terça-feira, 6 de agosto de 2013

TESE MESTRADO - DRA. TÂNIA


sábado, 18 de maio de 2013


TESE MESTRADO - DRA. TÂNIA



Faculdade de Economia da Uiversidade de Coimbra
Tania Mara Alves Barbosa
A RESPOSTA A ACIDENTES TECNOLÓGICOS: O CASO DO ACIDENTE RADIOATIVO DE GOIÂNIA.
Coimbra
2009
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Tania Mara Alves Barbosa
A RESPOSTA A ACIDENTES TECNOLÓGICOS: O CASO DO ACIDENTE RADIOATIVO DE GOIÂNIA.
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Sociologia - “Os Estados Nacionais Perante os Processos de Globalização” - da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra como requisito final para obtenção do Título de Mestre em Sociologia.
Orientador: Prof. Doutor João Arriscado Nunes
Coimbra
2009
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AGRADECIMENTOS
As contribuições para a consecução deste trabalho se deram das formas mais diversas e mais simples: Através de orientações, informações, palavras amigas, tolerância, carinho, paciência, amor, esperança, entre outras...
Foram muitas as pessoas que se desvelaram em me apoiar, auxiliar, influenciar e até mesmo em contribuir com o debate sobre a temática do trabalho. Entretanto, quero me limitar a expressar o meu profundo agradecimento a algumas pessoas que, de uma forma mais direta, contribuíram para que esta dissertação se tornasse uma realidade:
À minha mãe, Marli, presença constante em minha vida.
Ao meu esposo, Júnior, pelo companheirismo e empenho nessa nossa “empreitada” e, especialmente, aos meus filhos Júlia e Diogo e ao meu sobrinho Públio, símbolos de amor e amizade... motivação da minha caminhada.
Aos meus inseparáveis amigos, Marcelo, Zenóbia e Silvaneide, por sempre estarem ao meu lado, mesmo quando distantes.
Às Vítimas do Acidente com o Césio-137, na pessoa do Presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Sr. Odesson Alves da Silva. É impossível agradecê-lo o suficiente.
À Associação dos Militares Vítimas do Césio-137, pela disponibilidade e rapidez em solucionar as questões referentes a este trabalho;
Aos servidores da Superintendência Leide das Neves Ferreira, especialmente ao Hildeth e Marta, pela disposição em sempre auxiliar-me.
À Elaine Pereira, Bibliotecária do CRCN - CO, pelas longas horas de informações, mas, sobretudo, pelo apoio e Carinho.
À Junior Lima pela sinceridade, estímulo e amizade.
A todos os funcionários do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, pelo constante incentivo, apoio e simpatia.
Aos professores dos Seminários pertencentes ao Mestrado em Sociologia: Os Estados Nacionais perante o Processo de Globalização, pelo partilhar de seus conhecimentos.
E especialmente, à Lúcia Fernandes, pelo carinho, orientação, apoio, amizade, conhecimento... esta conquista é também um pouco sua.
Ao meu Orientador, João Arriscado Nunes, pela sabedoria, paciência e persistência na configuração de novos conceitos. Enfim, pela sua contribuição direta na execução deste trabalho.
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RESUMO
Este trabalho se propôs analisar, num quadro comparativo, a suficiência e a adequação da resposta do acidente radiológico de Goiânia, tendo em conta a sua amplitude. Seu objetivo geral relaciona-se ao estudo das respostas (estratégias e ações) aos problemas gerados pela ocorrência do acidente radioativo com o Césio-137, e visa, desse modo, contribuir para uma reflexão mais ampla sobre os processos de educação e de prevenção que não só garantam adequada proteção a todos os grupos da sociedade, mas especialmente aos mais marginalizados e mais vulneráveis a eventos deste tipo. Para tanto se realizou uma discussão teórica acerca dos acidentes ampliados, apresentando os acidentes de Seveso e Bhopal e, sua influência na configuração de todo o processo histórico, político e social de caracterização da normativa nacional, que sob influência internacional, veio se consolidando no Brasil. A discussão aprofunda-se a partir do relato histórico do acidente radioativo de Goiânia e no estabelecimento da sua dimensão ampliada com a identificação da forma como as respostas ao acidente foram organizadas e efetivadas e os rejeitos radioativos acondicionados. Esta dissertação possui como diferencial a perspectiva de contribuição para o aprofundamento teórico do caso do acidente de Goiânia caracterizando suas vítimas enquanto sujeito de direitos, como categoria especial e como minoria que necessita de respostas específicas. Neste sentido, apresenta uma retrospectiva sobre a situação de vida das vítimas, situação atual, e a forma como o Estado têm respondido às necessidades deste grupo e, com vistas a um maior rigor nesta questão, aplicou-se questionário e entrevista com representantes das vítimas. A análise perpassa a busca das vítimas por direitos sociais que surgiram de uma demanda específica por saúde e por condições de sobrevivência digna e, a partir desta dimensão, percebe-se que é fundamental aprender e valorizar essas experiências decorrentes de acidentes ampliados, instituindo o planejamento de emergências e garantindo o envolvimento ativo dos cidadãos e das comunidades em processos democráticos de debate, planejamento e decisão, ou seja, de garantia do efetivo exercício de direitos e de controle social. Este trabalho foi primordial para o entendimento de que a mobilização e organização social das vítimas de acidentes tecnológicos como o de Goiânia viabilizam e possibilitam respostas assistenciais aos principais atingidos, mas fundamentalmente, proporcionam a possibilidade de construção de novos tipos de respostas a situações de injustiça ambiental.
Palavras-chave: Acidente ampliado. Césio-137. Prevenção. Cidadania. Controle Social.
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ABSTRACT
This paper will analyse, in a comparative manner, the sufficiency and adequacy of the response to the Goiânia radiation accident, taking into consideration its amplitude. This paper’s general objective involves the study of the response (strategies and actions) to the problems generated by the occurrence of the radiological accident with Caesium-137, and in this way contribute to a more ample reflection of the process of education and prevention, that will ultimately not only guarantee adequate protection of all groups of society, but especially those who are marginalized and more vulnerable to events of this nature. For this, a theoretical discussion was accomplished presenting major accidents, such as the ones in Seveso and Bhopal and their historical, political and social influence in the creation of national standards that, with international influence, are being applied in Brazil. The discussion deepens with the historical report of the Goiânia accident, and in the establishment of its seriousness, starting with the identification of the ways that responses to the accident were organised and executed, and radioactive waste disposed. This thesis is different in that it has a prospective to contribute to the theoretical deepening of the Goiânia accident, offering a description of its victims as people with rights, as a special group and as a minority, who need specific answers. In this way, presented is a retrospection of the lives of the victims, their current situation, and the way in which the State has responded to their needs, for which a questionnaire and interview have been undertaken by the representatives of the victims, for greater accuracy in the answering of these questions. The analysis details the victim’s search for social rights that arose from specific demands of health care, and for dignified conditions of living, and from this, grasping the fundamental need to learn and to value the experiences arisen from such accidents; to institute the planning of emergencies, while ensuring the active involvement of citizens and communities in democratic processes of debate, planning and decision, and thus securing the effective exercise of rights and social control. This paper is primordial for understanding that the mobilization and social organisation of the victims of technological accidents such as the one in Goiania enable and make possible useful answers being given to the most afflicted, but fundamentally, they make possible the development of new types of responses to situations of environmental injustice.
Keywords: Major Accident. Caesium-137. Prevention. Citizenship. Social Control.
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LISTA DE ABREVIATURAS
AGANP - Agência Goiana de Administração e Negócios Públicos
AIEA - Agência Internacional de Energia Atômica
AV-Césio-137 - Associação das Vítimas do Césio-137
CEMAM - Conselho Estadual do Meio Ambiente
CEULP - Centro Universitário Luterano de Palmas
CGP - Container de Grande Porte
CNEN - Comissão Nacional de Energia Nuclear
COMPAV - Companhia de Pavimentação do Município de Goiânia
CONAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente
COPEL - Comércio de Aparas de Papel Ltda
CRCN-CO - Centro Regional de Ciências Nucleares- Centro Oeste
CRF- Centro de Recuperação Feminina
CRISA - Consórcio Rodoviário Intermunicipal
CRISA - Consórcio Rodoviário Intermunicipal S/A
EAS - Elementos Anormais e Sedimentoscopia
EIA - Estudo de Impacto Ambiental
ELETROBRAS - Centrais Elétricas Brasileiras S.A.
EMOP - Empresas de Obras Públicas de Goiás
FEBEM - Fundação Estadual do Bem-estar do Menor
FUNASA - Fundação Nacional de Saúde
FUNDACENTRO - Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho.
FUNLEIDE - Fundação Leide das Neves
FURNAS - Centrais Elétricas S.A.
HDT - Hospital de Doenças Tropicais
HGG - Hospital Geral de Goiânia
HNMD - Hospital Naval Marcílio Dias
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IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IBRACE - Instituto Brasil Central
IGR - Instituto Goiano de Radioterapia
IPASGO - Instituto de Previdência e Assistência do Estado de Goiás
IPTU - Imposto Predial e Territorial Urbano
IRD - Instituto de Radioproteção e Dosimetria
ISSQN - Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza
LBA - Legião Brasileira de Assistência
LIA - Limite Anual de Incorporação
MVR - Maior Valor de Referência
NUCLEBRÁS - Empresas Nucleares Brasileiras S.A.
OIT - Organização Internacional do trabalho
OSEGO - Organização de Saúde do Estado de Goiás
PM-GO - Polícia Militar do Estado de Goiás
PUC - Pontifícia Universidade Católica
QG - Quartel General
RESME - Relação Estadual de Medicamentos
RIMA - Relatório de Impacto Ambiental
SEMARH - Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hidricos
SIPRAM - Sistema de Prevenção de Acidentes Industriais Maiores
SULEIDE - Superintendência Leide das Neves Ferreira
UCG - Universidade Católica de Goiás
UCIL - Union Carbide Indian Limited
UFG - Universidade Federal de Goiás
ULBRA - Universidade Luterana do Brasil
UNB - Universidade Nacional de Brasília
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APRESENTAÇÂO
Nascida em Goiânia, Capital do Estado de Goiás, vivi apenas dois anos na capital. Tendo um pai militar e uma mãe professora primária, em uma conjuntura de ditadura militar, desde muito cedo aprendi a conviver com a inconstância de uma moradia em uma cidade fixa. Durante minha infância residi em quatro cidades interioranas e na adolescência em outras três.
Aos 15 anos, em 1987, residindo em Aruanã, cidade situada às margens do Rio Araguaia, a cerca de 350 km da capital goiana, cursava o ensino médio, quando me deparei com jornais noticiando o acidente radioativo em Goiânia. As informações eram muito confusas, mas traziam a idéia de perigo, de medo, de risco, de insegurança...
Até mesmo os fatos eram desencontrados, cada jornal contando versões diferentes dos demais. Passava a impressão de que nem toda a verdade estaria sendo relatada. Ademais, ficava tudo mais suspeito ainda, visto que há menos de 10 dias havia ocorrido em Goiânia o 1º Prêmio Mundial de Motovelocidade. O evento era a tônica do momento e significava investimentos públicos e privados na área de turismo, publicidade, economia, comércio, etc. Ficava claro o envolvimento de interesses variados.
O assunto trouxe muitos debates para o cotidiano daquela cidade interiorana, em que, por ser ela de porte turístico e possuir um forte fluxo de entrada e saída de pessoas, havia a preocupação da disseminação da radioatividade tanto pelas pessoas como pelos veículos automotores. E as discussões eram as mais variadas... A situação foi dada como sob controle após cerca de 30 dias e começamos a ter uma vida normalizada.
Em julho de 1989, ao adentrar a Universidade Católica de Goiás, na Faculdade de Serviço Social, ficou explícito o vínculo daquela instituição com trabalhos sociais em Organizações não governamentais e também governamentais, e nestas o compromisso com causas sociais. Neste embalo, em setembro de 1989, momento de relembrar os dois anos do acidente radioativo, tive o meu primeiro contato direto com algumas vitimas do Césio-137. Depoimentos, histórias escritas, artigos de jornais, documentos que me fizeram mais interessada na temática e também me permitiram entender um pouco mais a real dimensão do acidente ocorrido em Goiás.
Em 1991, a Universidade proporcionou uma visita ao depósito provisório de
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resíduos radioativos, em Abadia de Goiás, e vários participantes observaram que os tambores estavam com perfurações, situação que deixou os presentes atemorizados.
Participando da I Conferência Municipal de Saúde de Goiânia, foi possível verificar que a visão das organizações ali presentes era a de que as vítimas do Césio estavam bem representadas, e com um sistema de proteção bem organizado, que tinha inclusive alcance internacional. Não havia uma visão de futuro, ou de alcance maior, as vitimas eram apenas as oficiais, não se falava em outras vitimas.
Foi através do contato com o Mestrado em Sociologia, e mais precisamente ao ter oportunidade de ler mais cuidadosamente as obras de Boaventura Sousa Santos que comecei a perceber não só as contradições do acidente radioativo de Goiânia, mas também a vislumbrar possibilidades de poder contribuir de alguma forma para a desmistificação do que foi realmente o acidente radioativo de Goiânia. Assim me propus não só a realizar um levantamento bibliográfico sobre a questão, mas também a verificar o estado e as demandas atuais da questão.
Insisto em dizer que os seminários realizados no Mestrado em Sociologia na Faculdade de Economia foram fundamentais para aguçar minha percepção sobre a problemática que envolve o acidente radioativo de Goiânia. Somente os debates, discussões e constante colaboração do Professor João Arriscado Nunes e de Marisa Matias poderiam fazer aflorar a vontade de trazer à tona um assunto que a maior parte dos meus conhecidos gostariam de esquecer.
Esta dissertação é o resultado do esforço de trazer à luz a “outra” história do acidente de Goiânia, a que foi reduzida ao silêncio pela ação como pela omissão de um conjunto de atores.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
CAPÍTULO I - ENQUADRAMENTO TEÓRICO E METODOLOGIA 16
1.1 – Acidente ou incidente? A importância dos conceitos 16
1.2 – A ampliação da noção de causa dos acidentes: 18
1.3 - O processo histórico de complexificação dos acidentes. 20
1.4 - Acidentes ampliados: uma clarificação conceptual 21
1.5 - Acidentes de repercussão internacional: Seveso e Bhopal 23
1.5.1 – O acidente de Seveso 23
1.5.2 – O Acidente de Bhopal: 25
1.5.3 - A resposta aos acidentes ampliados de Seveso e Bhopal 27
1.6 – Procedimentos metodológicos 30
CAPÍTULO II – ACIDENTES AMPLIADOS NO BRASIL: A EFETIVAÇÃO DA NORMA INTERNACIONAL 33
2.1 – Planejamento e gestão do desastre: uma alternativa para minimizar os impactos de um Acidente Ampliado. 35
2.2 - A necessidade do gerenciamento de risco para viabilizar respostas a acidentes ampliados 37
CAPÍTULO III – O ACIDENTE RADIOATIVO DE GOIANIA: AS RESPOSTAS 39
3.1 – O acidente radioativo de Goiânia: Um breve histórico 40
3.2 – Estratégias de atuação dos órgãos governamentais: 45
3.3 – As abordagens institucionais ao acidente 49
3.3.1 – A abordagem médica: 51
3.3.2 – A abordagem Psicológica: 53
3.3.3 – A abordagem do Serviço Social 55
3.3.3.1- Os pacientes alojados no CRF-FEBEM 56
3.3.3.2- Os pacientes alojados no Albergue: 58
3.3.4 - O Auxílio Internacional no auge do acidente (Outubro a Dezembro de 1987): 58
3.3.5 - A abordagem da mídia: 59
CAPÍTULO IV – RESPONSABILIDADE E ASSISTÊNCIA 62
4.1 - A Assistência às Vítimas do Acidente Radioativo com o Césio-137. 63
4.2 - A questão da responsabilidade 66
CAPÍTULO V - REJEITOS RADIOATIVOS: DO DESTINO PROVISÓRIO AO DEPÓSITO DEFINITIVO 70
5.1 – A Operação Césio-137: a descontaminação e o acondicionamento dos rejeitos
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radioativos. 71
5.2 - Rejeitos radioativos: onde colocá-los? 75
5.3 - A qualificação da área para instalação do depósito provisório 78
5.4 – O armazenamento e a estocagem do lixo radioativo no depósito provisório. 82
5.5 - O EIA RIMA e a sua importância para a escolha do depósito 85
5.6 - O depósito provisório que se transformou em definitivo 87
5.6.1 - A estruturação do depósito definitivo: a “naturalização” do lixo radioativo. 88
5.6.1.1 - Da estrutura do depósito definitivo/permanente: 89
5.6.1.2 - Da unidade responsável pelo monitoramento e fiscalização do depósito 91
CAPITULO VI – AS CONSEQUÊNCIAS DO ACIDENTE RADIOATIVO COM CÉSIO-137 E A SITUAÇÃO ATUAL 93
6.1 - Da Associação das Vítimas do Césio-137: constituição e trajetória 93
6.2 - A Associação dos Militares Vítimas do Acidente com o Césio-137: constituição e trajetória: 96
6.3 - As vítimas do acidente com o Césio-137 - Assistência e Previdência Social: 99
6.4 - As vítimas do acidente com o césio-137 e o atendimento à saúde 104
6.5 - O fornecimento de medicamentos 107
6.6 - A versão das vítimas sobre o atendimento da SULEIDE 109
6.7. As respostas das pesquisas científicas: 111
CONCLUSÃO 114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 118
APÊNDICE 128
ANEXOS 133
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INTRODUÇÃO
Em Setembro de 1987 ocorreu o maior Acidente Radiológico do Planeta, o Acidente de Goiânia provocado pela abertura indevida de uma cápsula de Césio-137.
O acidente de Goiânia se configurou como o maior acidente radiológico do mundo. Inadvertidamente, dois catadores de sucata das ruas de Goiânia retiraram dos escombros de uma clínica, um aparelho de radioterapia. A intenção era vender o chumbo que continha na peça. Entretanto, ao romperem a peça a marretadas, a radiação se espalhou, atingindo especialmente a região central de Goiânia. A contaminação seguiu livre por mais de 15 dias, até que o “vazamento” de radiação se tornou público.
As respostas ao acidente ocorreram de improviso, visto que o Brasil não possuía nenhum plano de emergência para atendimento a situações desta natureza. Inúmeros problemas podem ser salientados devido à ausência de uma estrutura não só local, mas também nacional, para lidar com acidentes de grandes proporções.
O acidente de Goiânia tem características que o singularizam: ocorreu mediante o descaso tanto de uma instituição privada, o Instituto Goiano de Radioterapia - IGR, situado na região central de Goiânia, como também do Estado, pois envolveu a ausência de fiscalização e gerência do poder público Estadual e Federal.
O IGR funcionava em um imóvel de propriedade da Santa Casa de Misericórdia, posteriormente vendido ao Instituto de Previdência e Assistência social do Estado de Goiás - IPASGO, na região central de Goiânia, onde possuía autorização federal para lidar com uma fonte radioativa, por ser uma unidade de saúde com propriedade de uma bomba de Césio - 137 de fabricação italiana.
No tocante ao acidente, a responsabilidade do proprietário do IGR não foi estabelecida, visto que o mesmo abandonou o aparelho contendo Césio-137 no antigo endereço, quando da transferência da clínica para outro local. Também ao Estado, que deveria ser o fiscalizador e gerenciador das fontes radioativas, não foi comunicado o fato pelos responsáveis, e sequer houve dele conhecimento por meio das fiscalizações que deveriam ter ocorrido. Para além do exposto, o IPASGO, proprietário do terreno onde a bomba ficou exposta, deveria ter se responsabilizado
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pela segurança do local, até que os escombros dali fossem retirados.
A disseminação da contaminação por Césio-137 deu-se pelo contato direto com pessoas, objetos contaminados, e pelo contato indireto, através da contaminação de locais públicos ou de objetos de uso comum, como edifícios públicos, dinheiro ou ônibus de utilização pública.
O acidente tornou visível a vulnerabilidade dos diferentes segmentos da população local, associada às desigualdades no acesso ao atendimento à saúde, do crescente desemprego e subemprego e, em geral, das desigualdades de classe que, num país como o Brasil, permitiam que os interesses económicos privados fossem colocados acima da ação do Estado em prol do interesse público e da segurança e saúde dos cidadãos.
O acidente ocorreu por uma convergência de fatores múltiplos, que não podem ser avaliados isoladamente. Foi relevante, entre esses fatores, a necessidade de sobrevivência de catadores de sucata da rua, que não conseguiam, sequer, identificar o símbolo da radioatividade e os riscos a esta associados; a imprudência e irresponsabilidade dos proprietários ao deixarem uma peça de tão alto risco abandonada; e a ineficácia dos órgãos federais e estaduais que seriam responsáveis pela fiscalização do destino dado à peça.
A situação foi agravada pela demora de 15 dias para a identificação da ocorrência do rompimento da cápsula de Césio-137, e coincidiu com a realização do Grande Prêmio Mundial de Motovelocidade, que também aconteceu em setembro de 1987. Esta situação contribuiu para alimentar a suspeita de que as autoridades e a mídia teriam deliberadamente ocultado a gravidade da situação para não prejudicar a realização de um evento com grande impacto público.
O acidente radioativo de Goiânia se configura como o maior acidente radioativo (associado a Raios X) do mundo, na medida em que, foram monitoradas mais de 100.000 pessoas expostas ou potencialmente expostas a radioatividade, e, apesar das incertezas quanto ao número exato de contaminados, foram quase 300 as vítimas consideradas oficiais.
O acidente teve impactos ambientais com risco de contaminação da fauna e flora, com possibilidades de efeitos podendo afetar até três gerações.
Quase 20 anos após o acidente, há inúmeras ações na justiça solicitando a inclusão de pessoas na categoria de vítimas oficiais do Estado, especialmente aquelas que trabalharam na segurança, limpeza e transporte de resíduos
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radioativos.
O acidente suscitou a necessidade de assegurar respostas imediatas a situações deste tipo. Por não haver qualquer plano de resposta a emergências ligadas a contaminação por radiações, especialmente com a dimensão e o impacto do que estamos a tratar, as conseqüências negativas e mais duráveis do acidente foram, neste trabalho, consideravelmente ampliadas.
Nesta perspectiva o acidente radioativo com o Césio-137 de Goiânia se configurou como um acidente ampliado, visto que se caracterizou como:
“eventos agudos, tais como explosões, incêndios e emissões, individualmente ou combinados, envolvendo uma ou mais substâncias perigosas com potencial de causar simultaneamente múltiplos danos ao meio ambiente e à saúde dos seres humanos expostos” (FREITAS et al., 2000: 17, grifo nosso).
Desta forma, seu alcance foi para além do espaço onde se deu a abertura da cápsula de Césio-137, extrapolando a dimensão local e espacial, pois atingiu outros bairros e cidades, o meio ambiente, e, principalmente, impactou a saúde de suas vítimas individualmente, socialmente e estendeu seus efeitos às gerações futuras.
As respostas ao acidente de Goiânia foram ocorrendo paralelamente ao surgimento de demandas por parte da comunidade local e da sociedade internacional. Neste sentido, este trabalho pretende verificar como se deram as respostas ao acidente radioativo de Goiânia, a partir de uma comparação com as respostas a outros acidentes considerados graves, como Bhopal e Seveso.
Na perspectiva de contribuir para a reflexão sobre a prevenção de futuros acidentes ampliados, sejam eles decorrentes do ambiente de trabalho ou exteriores a este, intentou-se estudar o acidente de Goiânia enquanto acidente ampliado. Apesar de não se configurar como decorrente de um processo de produção fabril ou industrial, ele resulta da ausência de gestão apropriada de atividades de alto risco, seja por uma empresa privada, seja pelo Estado, responsável pela fiscalização sobre aparelhos de raios-X, ou seja, aparelhos de fonte radioativa, com utilização de fontes químicas de alto risco para a comunidade - no caso de Goiânia, com uso de Césio-137.
Assim, este trabalho propõe-se, mais precisamente, examinar num quadro comparativo a suficiência e a adequação da resposta do acidente radiológico de
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Goiânia, tendo em conta a sua amplitude.
O objetivo geral deste trabalho é o estudo das respostas (estratégias e ações) aos problemas gerados pela ocorrência do acidente radioativo com o Césio-137, e desse modo contribuir para uma reflexão mais ampla sobre os processos de educação e de prevenção que não só garantam adequada proteção a todos os grupos da sociedade, especialmente aos mais marginalizados e mais vulneráveis a eventos deste tipo.
São os seguintes os objetivos específicos desta pesquisa:
�� Caraterizar o acidente radioativo de Goiânia com o Césio-137 como acidente ampliado;
�� Identificar as respostas ao acidente com o Césio-137 e às suas consequências;
�� Contribuir com o aprofundamento teórico do caso do acidente de Goiânia para uma caraterização mais rigorosa das suas vítimas enquanto sujeito de direitos, como categoria especial, como minoria que necessita de respostas específicas.
A dissertação estrutura-se da seguinte maneira:
Na Introdução apresenta-se o enquadramento geral do trabalho, incluindo a Justificativa e os Objetivos. No Capítulo I, prossegue-se a conceituação, base do trabalho, apresentando a metodologia de sua realização e uma sinopse do que se entende por acidente ampliado, com a descrição de alguns casos de acidentes, as respostas a ele apresentadas e sua repercussão.
No Capítulo II apresenta-se o Caso de Goiânia, incluindo uma relação histórica e caraterização dos primeiros meses do acidente, procurando clarificar a forma como o mesmo foi gestado, elaborado e definido e as respostas governamentais e civis aos problemas gerados.
O Capítulo III explicita a efetivação da norma internacional no Brasil, apresentando a conjuntura do seu surgimento e a importância deste arcabouço legal para a construção de um sistema com princípios e diretrizes voltados para a prevenção.
O Capítulo IV aborda a forma como, nos primeiros momentos, o Estado organizou o atendimento às vítimas e como se deu a participação das instituições envolvidas.
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O Capítulo V sintetiza o debate em torno da responsabilidade e da assistência às vítimas, a partir do ano de 1988, permitindo continuar a seguir o processo após a fase da sua emergência.
No capítulo VI, aborda-se a problemática do lixo radioativo e as questões político-sociais decorrentes da definição do local de sua instalação.
No Capítulo VII, apresenta-se uma discussão geral, que procura alargar a discussão do acidente à situação atual das suas vítimas.
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CAPÍTULO I - ENQUADRAMENTO TEÓRICO E METODOLOGIA
1.1 – Acidente ou incidente? A importância dos conceitos
Ao se verificar no dicionário o significado dos termos “incidente” e “acidente” pode-se observar que são palavras sinônimas, entretanto no cotidiano estes termos não possuem similaridades, pois o primeiro indica a ocorrência de situações corriqueiras e desagradáveis, e o último configura-se como a concretização de um evento catastrófico. Na prática há clara diferença entre os seus significados.
No Acidente com o Césio-137, o Estado e a mídia fizeram uso desta “confusão”, conseguindo, em muitos momentos, minimizar os impactos do acidente ocorrido com o Césio-137, passando a idéia de que ocorrera um “incidente”, pois ficava a impressão de que o acidente seria algo simples, de pequeno impacto, que poderia ser resolvido rapidamente. Esta idéia fomentou a imagem de que no Brasil há efetivo controle sobre as fontes radioativas, que o Estado de Goiás estava devidamente preparado para acidentes de grande impacto, inclusive com radiação, e que a repercussão da contaminação, a assistência as vítimas estavam sendo realizadas devidamente, garantindo-lhes todos os direitos.
Urge explicitar que o termo acidente, segundo Sherique (2005), é conceituado como um evento que ocorre de forma não intencional, e sua principal característica é a ausência de intencionalidade, a ausência de dolo na sua ocorrência.
Um acidente pode se caracterizar como de baixo, médio e alto alcance, sendo a ele atribuído dimensão, conforme o número de pessoas ou o tamanho da área que foi atingida, como rios, terras, seres vivos e, em geral, o alcance sócio-ambiental do evento.
A ausência de intenção não significa ausência de responsabilidade e de responsáveis que, conforme o tipo de acidente, pode assumir a forma de responsabilidades individuais, empresariais, estatais, ou uma combinação de várias destas, que pode tornar a definição de responsabilidade complexa e de difícil concretização.
O fenômeno da responsabilidade ou da culpa é frequentemente associado a uma separação do contexto em que ocorreu o evento, sem que esta seja
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explicitamente vinculada à situação de inexistência de cuidados prévios. A análise das causas do acidente pode ser, assim, efetuada sem uma reflexão sobre o contexto em que o acidente está inserido sobre as formas de organização do setor privado e público – e, nomeadamente, de planos e de capacidade organizacional para responder a emergências ou a acidentes - que facilitam a emergência de condições propícias à ocorrência de eventos com grande impacto social e ambiental.
Mas o que distingue um acidente de um incidente? Significarão estes termos a mesma coisa? Ou eles se diferenciam? Segundo alguns autores, não há distinção entre os termos, variando os mesmos apenas no grau das suas conseqüências, sendo que do acidente advêm conseqüências mais drásticas. Neste sentido, Souza (1995), afirma que “muitos autores não fazem distinção quando tratam de termos como [...] acidente e incidente, o que ocasiona graves problemas de desvios de compreensão e comunicação”.
Outros autores afirmam que os termos se distinguem na prática: em um incidente há erros ou equívocos que poderiam ocasionar uma catástrofe, mas, por algum motivo, o evento que o transformaria em acidente não chega a efetivar-se. Por outras palavras, mesmo quando deixa alguma conseqüência, esta não terá o alcance de um acidente:
Um "quase-acidente", também reconhecido por incidente crítico ou simplesmente incidente, é um acontecimento que, apesar de possuir potencial para causar danos, não se manifesta em sua plenitude, ou seja, os danos resultantes deste evento não são percebidos a nível macroscópico. (SOUZA, 1995).
O acidente é a concretização de uma situação que pode se iniciar como um incidente. Mas é importante ressaltar que o acidente pode ocorrer independentemente da ocorrência anterior de um incidente. Assim, um incidente pode se transformar em acidente, mas o contrário jamais irá ocorrer. Um acidente pode, assim, ocorrer numa de duas formas: ou sem “aviso prévio” ou antecedido por um incidente. Esta última situação corresponde ao processo considerado neste trabalho. É importante, ainda, acrescentar que o limiar de gravidade de um acidente está associado, em boa medida, à sua localização espacial. Nos países ditos em vias de desenvolvimento, não só é maior a probabilidade de ocorrência de acidentes de maior amplitude, como tende a ser mais limitada a capacidade de responder
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adequadamente a esses acidentes.
Ao acontecer um acidente busca-se verificar o impacto do evento para a sociedade e as formas de evitar ou minimizar acontecimentos semelhantes no futuro. Isto implica determinar o número de vítimas, estabelecer os prejuízos para o ambiente, identificar as prováveis causas do acidente, e desenhar estratégias para resolução dos problemas por ele gerados.
Essas estratégias, porém, tendem em geral a ter poucas consequências no plano da preparação efetiva do conjunto da sociedade para responder a acidentes de grande dimensão. A incidência na questão da culpa e da responsabilidade em termos compatíveis com os quadros legais e a lógica jurídica dominante deixam por esclarecer as condições sistémicas, organizacionais e políticas favoráveis à ocorrência de acidentes (Vaughn, 1996).
E é por essa razão que é importante que este assunto venha a ter uma caracterização mais geral, levando em consideração as múltiplas interações que acabam por gerar o acidente. Freitas et al. afirmam literalmente a importância de atitudes voltadas para uma concepção mais ampliada que viabilize a prevenção e controle de acidentes:
(...) é fundamental quando pensamos no necessário aprendizado que os acidentes devem propiciar para que, a partir deles, possam ser formuladas estratégias de controle e prevenção da ocorrência de futuros eventos similares. (FREITAS, 2000: 53).
1.2 – A ampliação da noção de causa dos acidentes:
Os acidentes têm sua ocorrência determinada por múltiplos fatores que são, convencionalmente, classificados como sociais, econômicos, políticos ou outros. Assim, um acidente não tem uma única causa, ele decorre, em geral, de condicionantes internos e externos, que se traduzem em problemas operacionais da empresa aliados a aspectos sociais e políticos que envolvem trabalhadores das fábricas, comunidade do entorno, e políticos responsáveis pela gestão político-social. Neste sentido, Souza (1995) sugere que: “todo acidente ou incidente é precedido por uma ou mais causas, ou seja, fatores, de caráter material e/ou humano, que combinados resultam no evento indesejado”.
Atualmente se faz necessário que a análise das causas dos acidentes
19
extrapole a visão mono-causal que centra a culpa no erro humano, no ato falho ou no ato inseguro1. E, ao ultrapassar este eixo unidirecional, que aborda a responsabilidade por acidentes enquanto sinônimo da ausência da inserção de outros aspectos externos ou globais, será possível reconceptualizar a causalidade como causalidade múltipla e complexa. A verificação da responsabilidade pelo acidente no âmbito interno de uma empresa, por exemplo, não pode excluir a análise e verificação dos fatores externos que possibilitaram ou potencializaram o acidente.
Consubstanciando o exposto, no tocante a análise das causas de acidentes, Freitas et al. afirmam que
“(...) a análise de suas causas obviamente não pode se restringir somente ao que se encontra para dentro dos seus muros, abordando exclusivamente os eventos imediatamente anteriores e posteriores ao evento de risco, ou seja: o acidente”. (FREITAS et al, 2000: 49).
Assim, superar a clássica abordagem positivista centrada num conceito de causalidade simples é o grande desafio, uma vez que historicamente esta abordagem foi e ainda é utilizada para explicar acidentes. Entretanto, analisar um acidente de forma científica, tendo em conta a sua complexidade e contextualização implica considerá-lo em todas as suas múltiplas dimensões.
[...] a visão científica do acidente pressupõe compreendê-lo simultaneamente em suas dimensões de caso único, que é também representativo de situações comuns, com suas características singulares e gerais, dentro de um enfoque que [grifo] considere pelo menos os aspectos sociais, tecnológicos e epidemiológicos dos acidentes. (FREITAS et al, 2000: 53).
Assim, mesmo os acidentes de trabalho centrados em causas operacionais específicas, de impacto centrado no indivíduo, carecem de uma visão ampliada. A realização de um estudo para verificar a existência de possíveis problemas sociais ou econômicos, entre outros, que poderiam influenciar a concretização do acidente de trabalho, poderia ser uma forma de minimizar os riscos da produção de novos acidentes.
Esta concepção envolve o pensamento inovador voltado para a prevenção de
1O ato falho é vinculado à culpa pessoal e o ato inseguro à ausência de condições para o trabalho. Enfim, as duas situações remetem à culpabilidade individual.
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acidentes, que traz embutida a preocupação com a descoberta dos fatos ou processos que ocasionaram o acidente e também possíveis aspectos influenciadores da sua ocorrência. Essa prevenção, segundo FREITAS et al, (2000:50), “pressupõe um entendimento sobre as origens e as causas que podem levar a um acidente”.
A possibilidade de construção de estratégias de eliminação ou redução de acidentes implica que todas as formas de conhecimento na área de prevenção de acidentes devam ser consideradas e valorizadas para que se possa construir uma rede de proteção técnica e de apoio. Essas estratégias obrigam, pois, a ter em conta, nomeadamente, os conhecimentos e experiência desenvolvidos por movimentos sociais ou organizações para além do Estado e das empresas. A constituição e solidificação de redes que permitam afirmar a importância desses conhecimentos e sua indispensabilidade constituem um processo político da maior relevância para o efetivo empoderamento daqueles que são afetados pelos acidentes. Nunes, a este respeito salienta a:
(...) contribuição possível destas diferentes experiências para a emergência de novas formas de esfera pública não-estatal, de espaços que permitam, ao mesmo tempo, salvaguardar a autonomia tanto dos cidadãos e das suas organizações e movimentos como das instituições públicas, espaços de diálogo, de confrontação democrática de posições, de diálogo e de deliberação, capazes de reconhecer e de mobilizar o repertório diversificado de linguagens, de formas de expressão, de conhecimentos e de recursos para a acção colectiva que a eles trazem os diferentes actores sociais, e que são a condição de emergência, por sua vez, de novos actores colectivos. (NUNES, 2003: 27)
É essa a condição para a construção de alternativas mais democráticas de controle e prevenção capazes de considerar todas as variáveis que ocorrem em um acidente, abrangendo desde aspectos técnicos a aspectos políticos. Daqui resultaria o fortalecimento de uma esfera pública de novo tipo, realizando uma ampliação do espaço democrático.
1.3 - O processo histórico de complexificação dos acidentes.
O termo “acidente”, de imediato, sugere a relação com a temática de segurança no trabalho - saúde do trabalhador. Trata-se, de fato, de aspetos
21
intimamente relacionados que envolvem uma discussão teórica tanto do ponto de vista histórico da inserção do trabalhador no espaço sócio-ocupacional, como também do ponto de vista das relações sociais instituídas. Os acidentes de trabalho são conhecidos desde a Idade Média, associados a formas de trabalho manual próprias do modo de produção feudal. Com a Revolução Industrial e a passagem de uma produção artesanal para um processo de produção complexa, com procedimentos de trabalho mecanizado, padronizado e posteriormente potenciado através do fordismo e do taylorismo, o acidente de trabalho entrou na era da sua forma “coletiva”:
(...) Essa transformação modificou as relações de trabalho até então existentes, ampliando e intensificando a exploração do trabalho humano e concentrando mão-de-obra. Umas das conseqüências visíveis do desgaste desta mão-de-obra foi o aumento dos acidentes e doenças relacionados ao trabalho fabril. (FREITAS et al., 2000: 2).
No Brasil, a evolução dos processos industriais e tecnológicos esteve diretamente ligada à ocorrência frequente de acidentes, de pequena ou grande escala. A maior parte destes esteve estreitamente relacionada a acidentes de trabalho ou acidentes de produção. É importante ressaltar que no tocante a acidentes associados a uma economia industrial, podem encontrar-se dois tipos de ocorrências: uma, diretamente vinculada ao âmbito individual – são acidentes de trabalho que envolvem o indivíduo, a fábrica, mas que se situam no âmbito interno do trabalho, um tipo de ocorrência que pode ser qualificado de decorrente dos avanços tecnológicos, mas que ainda será justificado pela falha humana, legando ao homem trabalhador de baixa renda a responsabilidade pela ocorrência;
O segundo tipo, que extrapola o âmbito individual, tem um alcance social – no sentido mais amplo do termo - e ambiental. Ele chega a convocar, para a compreensão do acidente, até mesmo a organização política instituída pelo país onde se originou o acidente, mas também as relações de poder desigual entre as metrópoles capitalistas e os locais onde ocorrem os acidentes. O acidente torna-se, assim, um evento de âmbito que pode chegar a ser global.
1.4 - Acidentes ampliados: uma clarificação conceptual
Ao longo dos últimos 10 anos, tentou-se clarificar e aprofundar as
22
características de acidentes de maiores proporções. A própria denominação deste tipo de acidente, como salientam Freitas et al (1995), envolve a inclusão de uma grande variedade de conceitos, com diferenças conforme o local, a cultura e a sociedade de origem: na França, “accidents majeurs”; em Portugal “acidentes industriais graves”; na Alemanha, “Storfall”, entretanto todos salientam a importância dos acidentes que ocorrem em grande escala, minimizando as outras ocorrências de menor alcance, mas da mesma magnitude para o contexto em que está inserido.
No Brasil, a adoção de uma destas nomenclaturas poderia veicular a idéia de que os demais casos de acidentes (acidentes de trabalho, acidentes de trânsito, entre outros) seriam situações simples perante os acidentes de maior proporção. Se os acidentes ampliados são eventos de grandes proporções, que abrangem um espaço mais abrangente e um maior número de pessoas por evento, isso não significa que a sua importância seja maior do que a desses outros tipos de acidentes, mas que necessitam de tratamento específico. Ampliados ou não, os acidentes precisam de respostas efetivas no intuito de minimizar, ou até evitar, uma nova ocorrência, obtendo respostas comprometidas e de qualidade. Daí que os eventos de que aqui tratamos sejam denominados, no Brasil, de acidentes ampliados, o que evita a implicação de que outros tipos de acidentes são menos complexos ou menos graves.
Os acidentes ampliados têm como característica específica o fato de que extrapolam o âmbito local, o espaço de trabalho, atingindo pessoas vizinhas à área impactante, inclusive trabalhadores de outras áreas, pois ultrapassam os muros das fábricas, afetando tanto pessoas diretamente envolvidas como as que não têm um contato direto nos processos de trabalho realizados no interior da fábrica, como moradores de vilas, bairros, cidades e países de áreas circunvizinhas.
No curto, médio e longo prazo, os acidentes ampliados podem estar na origem de problemas de saúde que se estendem para além do espaço e do tempo específicos em que ocorre o acidente. Entre as suas consequências no domínio da saúde incluem-se, segundo Freitas et al, (1995:505), “teratogênese, carcinogênese, mutagênese e danos a órgãos alvos específicos”.
Nesta perspectiva, é importante enfatizar que a nomenclatura utilizada no Brasil teve em vista a garantia do respeito a outras formas de acidentes e, simultaneamente, conseguiu demonstrar as características singulares que apresentam os acidentes ampliados. Referindo-se aos acidentes químicos, dizem-
23
nos Freitas et al (1995: 505):
O que caracteriza os acidentes químicos ampliados não é somente sua capacidade de causar grande número de óbitos, embora sejam freqüentemente conhecidos exatamente por isto. É também o potencial da gravidade e extensão dos seus efeitos ultrapassarem os seus limites espaciais - de bairros, cidades e países - e temporais - como a teratogênese, carcinogênese e danos a órgãos específicos.
Esta configuração nos leva a dedicar uma atenção especial a acidentes que vêm ocorrendo com resultados impactantes em países desenvolvidos, mas principalmente em países periféricos e semiperiféricos, pois nestes as vítimas fatais tendem a ser mais numerosas e os impactos, a maior parte das vezes, mais duráveis do que nos primeiros.
1.5 - Acidentes de repercussão internacional: Seveso e Bhopal
O acidente de Seveso, na Itália, constitui um marco na implantação de uma legislação preventiva no tocante a acidentes ampliados. Sinalizou o início de uma discussão internacional mais efetiva e fundamentada acerca da questão. Por sua vez, o acidente de Bhopal, na Índia, demonstrou a amplitude e persistência dos efeitos deste tipo de acidente em contextos em que é frágil a proteção de pessoas e do ambiente perante os efeitos adversos da atividade industrial.
1.5.1 – O acidente de Seveso
De acordo com DE MARCHI et al. (2000), em Seveso, cidade da Itália, ocorreu em 1976, um dos maiores acidentes industriais de que há memória naquele país e no território europeu. Uma unidade industrial química - Industrie Chimiche Meda Societá Azionaria- ICMESA - sofreu uma explosão em um dos seus reatores, com um vazamento de “triclorofenato de sódio” - TCP, soda cáustica e solventes, entre outras substâncias tóxicas 2.
Apesar da ICMESA se situar na periferia de Meda, provocou uma nuvem tóxica que alcançou uma distância de 6:1 km de largura, atingindo diretamente Meda, Seveso, e outros municípios como Cesano Maderno, Desio, em um total de 103.000
2 Estes compostos são utilizados na fabricação de produtos medicinais, como sabão artesanal. O TCP pode ocasionar graves danos à saúde humana, incluindo a cloroacne, uma doença de pele.
24
habitantes; menos atingidos foram municípios como Barlassina e Bovisio Masciago, com 17.000 habitantes.
Ilustração 1 - Área de alcance da nuvem tóxica3
A região onde se situava a unidade, uma das mais industrializadas da Itália, sofreu com os problemas sociais, econômicos e ambientais causados pelo acidente. Segundo DE MARCHI et al., (2000:136), na esteira destes problemas vieram as incertezas geradas no decorrer do processo de comunicação entre a empresa e a população local, com um agravamento dos sentimentos de insegurança que a população experimentou naquele momento de catástrofe, em relação às incertezas “científica, legal, moral, social, institucional, de propriedade e situacional” e o consequente descrédito de técnicos, peritos e autoridades.
“O acidente causou incredulidade” (Idem, 2000:139), pois até então as pessoas que não trabalhavam na indústria não tinham conhecimento do perigo e do risco que o empreendimento representava para a comunidade. As incertezas foram geradas
pela ausência de informações, pelas informações prestadas a conta-gotas, e pela
3 Florido (2001).
25
ausência de divulgação do tipo de substância que havia vazado e do alcance gravidade dos danos que ela poderia causar.
O aspecto científico central do caráter ameaçador do desastre de
pesar das conseqüências diretas na vida da população, como óbitos de
anim
de um
1.5.2 – O Acidente de Bhopal:
O acidente de Bhopal, na Índia, foi um evento que abriu um intenso debate
sobre
Seveso é a toxicidade da dioxina. Logo que se tomou consciência disto, em efeito, a população já havia sido submetida à contaminação por dioxina, e o incidente por definição, tornou-se um desastre; os efeitos psicológicos, sociais e econômicos desta tomada de consciência foram severos para muitas pessoas e sobre toda a comunidade. (DE MARCHI et al., 2000: 141)
A
ais e morbidades como a cloroacne e outras menos visíveis a curto prazo, como as associadas aos traumas psicológicos e aos possíveis casos de câncer, por exemplo, os modelos de causalidade dominantes não permitiram estabelecer inequivocamente uma relação entre essas consequências mais afastadas no tempo e no espaço e o próprio acidente. Por outras palavras, a concepção de causalidade adotada para explicar o acidente de Seveso pôde, assim, ser usada, potencialmente, para ilibar uma dioxina com elevada toxicidade, alegando não ser possível estabelecer uma relação inequívoca entre a dioxina e os problemas de saúde surgidos após o acidente. Dessa forma, tornava-se possível continuar a defender o uso da dioxina para fins industriais, com o risco de ocorrência de novos acidentes. O acidente de Seveso representou, de qualquer modo, o início da configuração
a política internacional para a prevenção e tratamento de acidentes de grande proporção, com a definição, pela Europa comunitária, da “Diretiva Seveso”4, que prioriza, em várias passagens, o direito do público ao acesso a informações sobre os riscos associados a certos tipos de atividade industrial e ao uso de certos tipos de substâncias.
os seus impactos e trouxe consigo a necessidade de se rediscutir a urgência
4 A Diretiva de Seveso foi publicada em 1982 e revista em outubro de 1996, passando o novo documento a denominar-se Diretiva de Seveso II. A primeira Diretiva indicou a prevenção de acidentes maiores e a segunda ampliou a anterior, apontando a necessidade de relacionar “substâncias ecotóxicas, planos internos e externos, sistemas de gestão e relatórios de segurança”. (SILVA e ADISSI, 2005: 2575)
26
da construção de estratégias preventivas e de assistência às vítimas em caso de ocorrências similares. O evento aconteceu em conseqüência de um vazamento de gás da fábrica
Union
Mais de 25.000 toneladas de isocianato de metila haviam escapado
O vazamento do gás ocorreu na madrugada de 03 de dezembro de 1984, em
um d
ado nota que a nuvem tóxica atingiu uma área equivalente a 6.500 ha. e
ocas
Quarenta toneladas de gás vazaram da fábrica produtora de
Atualmente a fábrica responsável, a UCIL, foi incorporada à Dow Chemicals,
que s
Carbide Indian Limited (UCIL), multinacional norte-americana presente naquele local para fabricação de defensivos agrícolas ou agrotóxicos. Os fabricantes utilizavam como um dos compostos de seu produto final o isocianato de metila, gás altamente letal que pode provocar sintomas como: náuseas, dor abdominal, hemorragia ou coma, entre outros, podendo levar à morte:
para a atmosfera - e Bhopal, uma cidade histórica de 900.000 habitantes construída no século XI, inscrevera-se como palco da mais devastadora catástrofe já desencadeada por uma substância química em tempos de paz. Em menos de 48 horas, mais de 2.000 pessoas foram mortas por asfixia, a maioria enquanto dormia. Dos 50.000 feridos, quase a metade está cega, com as córneas ulceradas pelo gás, e até o final da semana passada vagavam pelas ruas da cidade à procura de socorro. (VEJA, 1984)
os reservatórios da UCIL e, através de uma nuvem tóxica atingiu, “entre 100.000 e 200.000” (Freitas et al., 1995: 508). As vítimas fatais oficiais contabilizadas logo após o acidente, segundo Silva e Adissi (2005), foram estimadas em 2500. Mach
ionou a morte de cerca de 8.000 pessoas nos três primeiros dias pós-acidente:
pesticidas, provocando a morte de 8 mil pessoas nos três dias subseqüentes ao acidente. Mais de 520 mil indivíduos foram expostos aos efeitos dos gases e até hoje, vinte anos após o acidente, 150 mil permanecem cronicamente doentes. Estima-se que 20 mil pessoas já tenham morrido como resultado desse acidente. (MACHADO, 2006: 8)
e transformou na segunda maior indústria química do mundo. Em 1999, a UCIL foi vendida à Dow por US$ 9,3 bilhões, sem que, contudo, a Dow tenha assumido as dívidas de sua incorporada:
27
[...] Enquanto os moradores de Bhopal continuam a sofrer os
Bhopal caracterizou-se por ser um acidente que extrapolou o local, alcançou o
espa
tribuiu para “demarcar os contornos
socia
m processo de
padro
1.5.3 - A resposta aos acidentes ampliados de Seveso e Bhopal
Acidentes como Bhopal e Seveso foram caracterizados como acidentes
quím
,
impactos do desastre de 1984, a responsabilidade legal pelo acidente ainda está sendo julgada pela justiça norte-americana, uma vez que a Dow se recusa a aceitar o passivo ambiental adquirido na compra da Union Carbide [...] (ROCHA JR et al., 2006)
ço nacional e internacional através da ampla visibilidade conferida ao acidente, decorrente tanto da sua gravidade como da conjuntura de discussão da questão ambiental que marcava o cenário internacional. Machado (2006:14) afirma que Bhopal con
is do evento e para gerar uma síntese normativa, por meio dos ativistas políticos e dos empreendedores de normas”. No período que se seguiu à Diretiva de Seveso, o acidente de Bhopal possibilitou a efetivação da Convenção 174 da Organização Internacional do Trabalho - OIT para a Prevenção de acidentes industriais maiores. Esta convenção sinalizou uma preocupação internacional com a prevenção de acidentes e levou nações a iniciarem um processo preventivo de elaboração de lei que complemente a orientação internacional, fomentando a prudência em relação à possibilidade de ocorrência de acidentes. A criação de uma normativa internacional propiciou u
nização mínimo dos procedimentos utilizados na produção e na organização das relações entre indústrias e operários, comunidade, ambiente, e o Estado do país que abrigam as indústrias. No plano internacional, assistiu-se a uma preocupação crescente com as implicações éticas dos desastres industriais, promovendo ações voltadas para a defesa dos direitos humanos dos potenciais atingidos ou afectados e para a justiça social.
icos ampliados, pois extrapolaram o espaço das fábricas, atingindo não só os trabalhadores destas (como acontece em situações caracterizadas como acidentes de trabalho), mas também moradores territórios circundantes e até cidades próximas. O carácter ampliado do desastre decorreu das suas consequências, ambientais, econômicas e sociais, e dos seus efeitos a curto, médio e longo prazo. Uma abordagem das respostas dadas a acidentes ampliados como Seveso
28
Bhop
lização de
plane
s inocentes no processo,
na m
dro do
neoli
, clarificar que o acidente de Goiânia, conforme o que
prece
digo de práticas os
al e outros mostra que essas respostas, em geral, são insuficientes para atender às demandas dos principais atingidos ou para assegurar um apoio adequado a estes. Elas estiveram, contudo, no centro de um debate internacional, que conduziu à definição de uma norma internacional, a Convenção 174. Essa norma, juntamente com as recomendações práticas de rea
jamento prévio por empresas e Estados que operem com substâncias que oferecem risco potencial de acidentes, criou a possibilidade de construção de políticas públicas capazes de responder de maneira rápida e adequada aos acidentes maiores ou ampliados e às suas consequências. As empresas viram desaparecer a presunção de parte
edida em que foram obrigadas a formalizar o seu reconhecimento dos perigos associados às substâncias que produzem ou com que operam. O Estado se torna, neste processo, co-responsável pelos prejuízos de um acidente ampliado, pois na medida em que autoriza a instalação das Fábricas/Indústrias em seu território, assume a relação custo-benefício dessa instalação, subscrevendo os benefícios fiscais (impostos), sociais (trabalho e renda), econômicos (minimização de custos de produtos finais), e de forma indireta aceitando como seus os prejuízos que possam decorrer de acidentes como a libertação de substâncias tóxicas no ambiente. Neste domínio, impôs-se uma prática que se tornou comum no qua
beralismo, a de a retirada do Estado do processo produtivo ter como corolário a assunção ou redistribuição pelo Estado dos efeitos das externalidades negativas decorrentes desse processo, ou seja, garantindo a privatização dos benefícios e socializando os efeitos negativos. Acidentes como os de Seveso, Bhopal ou Goiânia demonstram claramente que, de fato, são as populações atingidas que acabam por carregar o ônus da situação, É importante, neste ponto
itua o Manual de Práticas da OIT, não seria considerado como um acidente ampliado, pois os “riscos nucleares” são excluídos do rol de possíveis causadores de acidentes ampliados, presumindo-se a existência, para o enfrentamento desses riscos, de sistemas específicos – que, neste caso, não existiam: Excluem-se do campo de aplicação deste có
riscos nucleares e os de natureza estritamente militar, para os quais há, provavelmente, sistemas de controle global próprio. Exclui-se também deste código o transporte de substâncias perigosas, por se tratar de controle e gerenciamento diferentes daqueles aplicáveis em lugares estáticos. (FUNDACENTRO, 2002: 16, grifo nosso)
29
a posição, pensamos que o acidente de Goiânia inaugu A despeito dest rou uma
forma
a nuclear e não
ter c
trados em locais fixos
e qu
ente estratégias para prevenção de
acide
ções das autoridades na
assu
ódigo de Práticas trouxe novas perspectivas de proteção e
segu
controle das instalações que ofereçam riscos maiores e em que cada
diferenciada de acidente ampliado, um acidente com substância radioativa, proveniente do rompimento de um aparelho de radioterapia, que ocorre em lugar estático, tem mais de 200 vítimas admitidas oficialmente, atinge uma grande área geográfica extrapolando a fronteira municipal. Suas conseqüências ultrapassam o tempo e espaço imediato onde ocorreu o acidente, visto que as vítimas sofrem até hoje, 20 anos depois, as conseqüências biopsicossociais do evento. Assim, apesar de não se constituir como um acidente em usin
aráter militar, o acidente de Goiânia apresenta todos os outros quesitos que permitem enquadrá-lo na categoria dos acidentes ampliados. Vale mencionar que aparelhos de radioterapia são encon
e necessitam se enquadrar em medidas apropriadas de prevenção. Essas medidas estão indicadas nos pressupostos mínimos expostos no Código de Práticas da OIT, como também nas recomendações necessárias para instalação de formas de planejamento e de gestão de um desastre. É um documento que traça especificam
ntes ampliados: Explicita o que é uma instalação que representa risco e lista as possíveis substancias perigosas ao uso, apresentando um sistema de prevenção que inclui definição de risco, localização da instalação, capacitação dos Recursos Humanos, e especialmente a publicização de todas as atividades da Empresa com a conseqüente realização do Planejamento de Emergências. Pode-se observar clareza na definição sobre as obriga
nção do gerenciamento do sistema preventivo, pois especifica a atribuição de políticos, proprietários de Empresas e Técnicos na gestão, possibilitando a estes atores a análise dos riscos, o controle das causas, a “fiscalização” e a atuação sistemática, pública, e conjunta entre trabalhadores, empresários, políticos e população local não só no momento da ocorrência de acidentes, mas desde a instalação da Empresa. Em verdade, este C
rança social às partes mais atingidas: trabalhadores, população e meio ambiente. Serviu como forma de orientação e controle social aplicando um sistema de precaução e prevenção de acidentes ampliados, em que o Estado deve efetuar o
30
estabelecimento de risco deve envidar esforços para evitar a ocorrência de acidentes, e no caso de sua concretização, devem assumir sua responsabilidade em sanar as conseqüências por ele geradas. 1.6 – Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa constituiu-se em uma pesquisa exploratória. Segundo Gil
(1996:45), esta modalidade de pesquisa tem como objetivo principal o
aprof
a, do Instituto Brasil Central – IBRACE, da Universidade
Fede
esidência da pesquisadora, no
Estad
á outra
mane
undamento de assuntos, “proporcionar maior familiaridade com o problema”. Incide sobre um caso específico, explorando as relações histórico-conceituais que lhe estão associadas.
Num primeiro momento, foi realizado levantamento bibliográfico nas Bibliotecas da Universidade de Brasíli
ral de Goiás, do Senado Federal em Brasília, do Centro Universitário Luterano de Palmas, do Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro Oeste em Goiânia - local onde estão depositados os rejeitos radioativos do acidente com o Césio-137 de Goiânia -, e na sala de acervos bibliográficos da SULEIDE, que abriga todos os relatórios das equipes de trabalho que atuaram no acidente e também relatórios institucionais, memorandos, ofícios, recortes de jornais, fotografias, prontuários médicos, trabalhos científicos de especialização, teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre o acidente radioativo de Goiânia. Este levantamento iniciou-se em novembro de 2004, e um dos seus principais limitadores foi a distância espacial entre o lugar de r
o do Tocantins, e o seu campo de trabalho, a uma distância de cerca de 900 km, no Estado de Goiás, situação que dificultou a realização deste trabalho. No tocante à pesquisa bibliográfica e documental, sua grande vantagem residiu no fato de que, como observa Gil (1996:50), “em muitas situações, não h
ira de conhecer os fatos passados se não com base em dados bibliográficos”. Assim o levantamento bibliográfico e documental foi realizado priorizando uma caracterização que partiu do geral para o particular, com a realização de estudo sobre acidentes de grande porte - seus conceitos, entendimentos e ocorrências, com um enfoque particular no acidente radioativo de Goiânia: sua história, impacto e efeitos, e suas implicações sócio-políticas, nomeadamente no plano da possível ampliação da participação pública e da cidadania ativa e do seu efeito no
31
fortalecimento dos processos democráticos. A seleção da bibliografia e documentos a serem utilizados foi feita segundo o critério de sua especificidade em termos de informações acerca do evento, tendo-se
priori
relatórios podem ser encontradas em
depo
dência Leide das Neves – SULEIDE, entidade responsável pelo
moni
instalação do depósito definitivo
dos r
és de procedimentos
inten
endo geridos tanto pelo Estado como pela comunidade,
zado aqueles que incluíam informações oficiais, informações decorrentes de trabalhos científicos, relatos e outras menções em jornais e revistas e, finalmente, informações acessíveis através da internet. Existe um conjunto significativo de materiais jornalísticos sobre o tema. Além disso, muitas informações não contidas em
imentos incluídos em dissertações e teses. Há uma acervo importante de fotos e matérias noticiosas cobrindo o histórico do acidente e também a situação atual dos radioacidentados, com ênfase na discussão das causas e conseqüências do acidente. Em relação à pesquisa de campo, foram realizadas três séries de visitas à Superinten
toramento e assistência aos radioacidentados, com duração, respetivamente, de quatro, dois e três dias. Durante essas visitas, foi realizada observação sistemática do atendimento aos radioacidentados e as representações dos radioacidentados pelos funcionários da SULEIDE. Foram efetuadas visitas sistemáticas ao Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro-Oeste – CRCN-CO, local de
ejeitos radioativos, que tornaram possível conhecer toda a estrutura física da instituição, os seus laboratórios5 e os dois depósitos de rejeitos radioativos em sub-superfície e, em especial, a sua biblioteca, que contém vários documentos institucionais e também trabalhos científicos. Dentre estes, foi dada particular atenção a relatórios elaborados pela Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN, um dos órgãos responsáveis pela gestão dos trabalhos de descontaminação e de coleta, segregação e depósito dos resíduos radioativos. A opção pelo estudo de caso baseou-se na necessidade de uma reconstrução pormenorizada e rigorosa do evento, possível apenas atrav
sivos de pesquisa. A pesquisa permitiu seguir o acidente radioativo de Goiânia e as formas como os seus efeitos vêm s
5 O local se tornou um Centro de pesquisa e desenvolvimento científico e de controle de radiação.
32
torna
bibliográfico, através
da a
ítimas com o Césio-137, com uma
distâ
Associação das Vítimas do Césio-137 e respondido pelo seu
Presi
respondido pelo seu secretário, visto que a entidade convencionou que
a res
quiridos e solicitação de autorização junto das entidades a
inqui
ndo possível uma avaliação da situação atual de atendimento às vítimas, as respostas que estão sendo oferecidas a estas e à comunidade. Aprofundando o estudo de caso, foram procuradas informações complementares, das recolhidas no levantamento documental e
dministração de questionários junto à direção da Associação de Vítimas do Césio-137 - AV-Césio-137, entidade que representa todas as vítimas do Césio-137, e da Associação dos Militares Vítimas do Césio-137 - AMVC-137, que representa os Policiais Militares que trabalharam na contenção de áreas, vigília e colaboraram na descontaminação durante o acidente radioativo, permitindo clarificar aspectos mais obscuros ou menos documentados do processo. Para além da troca de e-mails, foram realizadas conversas informais e duas entrevistas com o Presidente da Associação das V
ncia temporal de 6 meses entre elas. As entrevistas incidiram sobre aspetos menos claros ou omissos dos materiais documentais, mediáticos e bibliográficos consultados. Foram aplicados 2 questionários, incluindo perguntas abertas. O primeiro foi apresentado à
dente. O segundo também foi apresentado a Associação dos Militares Vítimas do Césio-137, e
posta a questionários é uma de suas atribuições. Os questionários foram enviados por e-mail A aplicação dos questionários foi realizada na sequência de contatos pessoais, conversas com os in
rir.
33
CAPÍTULO II – ACIDENTES AMPLIADOS NO BRASIL: A EFETIVAÇÃO DA NORMA INTERNACIONAL
No Brasil, a diretiva de Seveso passa a ser explicitamente invocada e aplicada quando ocorre o acidente na Vila Socó, na cidade de Cubatão, no Estado de São Paulo.
O acidente, que aconteceu em 24 de fevereiro de 1984, foi causado por um vazamento no oleoduto da Petrobrás, que ligava a refinaria de Capuava e o terminal de Alemoas, em Santos-SP. Por falta de comunicação, iniciou-se o processo de bombeamento do combustível que, devido à dimensão de seu fluxo, às 23h30min, rompeu um dos tubos de ligação (com vazamento desde o início da tarde), atingindo assim o mangue sobre o qual estava instalada a favela, causando um incêndio generalizado na área, que vitimou cerca de 500 pessoas.
Durante a tarde de sábado, o vazamento já era visível na superfície da água. Com a maré em processo de cheia, o nível da água se elevou até os assoalhos das palafitas. Milhares de litros de gasolina foram recolhidos pela população com o intuito de serem posteriormente vendidos. (BAÚ, 2006: 36).
A partir de então, o país iniciou um posicionamento referente aos acidentes ampliados com a entrada em vigor, em 1986, da resolução nº. 001/86- CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente6, que introduziu no processo de licenciamento ambiental a necessidade de ações que contemplassem a prevenção e neste caso incluíssem as possibilidades de diminuição dos acidentes.
Do ponto de vista prático, as discussões sobre a necessidade de se construir um arcabouço legal que viesse a configurar uma estrutura preventiva de acidentes deu-se em diversos momentos, destacando-se, dentre eles, a realização do Projeto do Sistema de Prevenção de Acidentes Industriais Maiores – SIPRAM em Cubatão - SP, que conforme Hyde et al. (2005) mobilizou a comunidade nacional e internacional.
Silva e Adissi (2005) observam que, na esteira da realização da Conferência
6Esta resolução disciplina a necessidade da realização do Estudo de Impacto Ambiental -EIA- e do Relatório de Impacto Ambiental - RIMA para atividades que venham a modificar o ambiente. Oportunizando a discussão sobre prevenção de acidentes ampliados. (HYDE et al., 2005).
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das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992, surgiu no cenário internacional, no ano de 1993, a Convenção 174, em Genebra.
O debate sobre a ratificação e sanção da Convenção 174 se iniciou ainda em 1993 e se aprofundou em 1994, no Seminário Latino-Americano Tripartite para a Prevenção de Acidentes Industriais. Ainda segundo Hyde et al. (2005), foi o momento em que houve uma sinalização da delegação brasileira pela ratificação deste protocolo que já era aplicado em vários países, tais como: Suécia, Armênia, Colômbia, Holanda, Estônia, entre outros.
As discussões se tornaram mais amplas, tendo delas participado entidades sindicais, organizações não-governamentais e outras entidades da sociedade. Este debate possibilitou a elaboração de documentos que contribuíram para a solidificação de propostas tais como a Carta de Atibaia:
Outras reuniões e eventos destinados à discussão do tema foram organizados, via de regra com a participação de entidades sindicais, sendo que em 1995, em um destes eventos foi publicada a “Carta de Atibaia”, que traçava as diretrizes para prevenção desses acidentes e para a ratificação da Convenção 174. (HYDE et al., 2005: 8)
Após o seminário, em 1998, foi criada a Comissão de Trabalho com composição tripartite, com a participação de representantes de trabalhadores, empresas e Governo, e em 2000, o Grupo de Estudos Tripartite. Segundo Rocha Jr et al (2006), a Comissão teria como fim analisar os pressupostos da Convenção 174 e da Recomendação 181; e o Grupo teria como objectivo operacionalizá-las no país. Estas discussões culminaram com a ratificação, no Brasil, em 2001, da Convenção 174, e a sua sanção no ano seguinte.
A implantação da Convenção 174 tem esbarrado nos aspectos ligados à forma conservadora, centralizadora e concentradora como o Brasil se desenvolveu política e economicamente. A acentuada exclusão proveniente da ausência de patamares mínimos em domínios como Educação, Saúde, Assistência e Previdência Social atinge especialmente as áreas periféricas, em que tendem a ser instaladas as fábricas ou os grandes complexos industriais.
A proximidade entre instalações industriais e populações excluídas foi durante muito tempo analisada como estratégia de maximização de lucro (ela possibilitaria maior assiduidade e menor absentismo por parte dos trabalhadores, além de permitir, através do recrutamento em regiões de muito baixa renda, manter baixos os
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custos salariais). Esta situação contribui para a ampliação dos fatores de risco, associada a carências destes grupos da população em termos de informação e de capacidade de resposta a ameaças à sua saúde, segurança e integridade física.
Freitas et al. (1995) corroboram o que foi exposto quando afirmam que existem algumas características comuns na forma como ocorrem os acidentes ampliados: a proximidade da indústria química a regiões densamente povoadas, a possibilidade de vazamento de produtos altamente tóxicos e seus efeitos imprevistos, com forte possibilidade de estes serem severos e crônicos, e principalmente a burocracia (dificuldade-lentidão) das empresas e autoridades envolvidas em informar/repassar dados técnicos relevantes sobre as substâncias envolvidas nos vazamentos tóxicos, impedindo, desse modo, respostas mais rápidas e eficazes.
Nestas condições, são os grupos mais pobres que suportam a carga mais pesada do modelo econômico atualmente em pauta. São estes que pagam por um desenvolvimento que se reduz ao crescimento, por vezes com as suas vidas e a sua saúde:
As condições sociais e políticas que contribuíram em 1984 para tornar esses acidentes os mais graves já registrados nos últimos anos continuam presentes, cabendo às populações mais pobres dos países de economia periférica arcar com o ônus de suas vidas e saúde para sustentar um modelo econômico iníquo na sua natureza e dinâmica. (FREITAS et al., 1995: 507).
2.1 – Planejamento e gestão do desastre: uma alternativa para minimizar os impactos de um Acidente Ampliado.
O planejamento de emergências tornou-se uma prática mais comum a partir da adopção da Convenção 174, que sinalizou a importância de prevenir acidentes e, no caso da ocorrência destes, reduzir, minimizar e limitar os seus impactos. Planejar a forma como se deve atuar frente a uma situação de desastre envolve um compromisso com o futuro da unidade industrial em causa e com as pessoas que nela trabalham, com a defesa do ambiente e a responsabilidade perante as gerações futuras.
Nesse sentido, em 1990, foi elaborado pela Organização Internacional do Trabalho – OIT um Código de Práticas para atuação em acidentes maiores. Participaram do grupo que o elaborou, 21 especialistas provenientes de diversos países, mantendo composição paritária entre representantes de trabalhadores, de
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governos e de empresários. O documento, intitulado “Prevenção de Acidentes Industriais Maiores”, teve como escopo ser uma recomendação prática preventiva aos responsáveis por instalações dedicadas a atividades com potencial de ocasionar um acidente ampliado. Esse documento:
(...) foi elaborado com o objetivo de oferecer orientação a pessoas envolvidas na estruturação de providências relativas ao controle de acidentes maiores na indústria: autoridades competentes, gerências de operações, serviços de emergência e inspetores públicos. (FUNDACENTRO, 2002, prefácio)
O manual deveria servir como uma referência de orientação e informação na criação de sistemas de controle em locais onde haja risco de acidentes maiores, com vistas a contribuir tanto para a prevenção como para a redução dos impactos que possam ser ocasionados pelos acidentes.
Este “Código de práticas” inscreveu em seu texto, de maneira explícita, o reconhecimento das possibilidades de ocorrência de acidentes ampliados em indústrias que operassem com emissão de substâncias tóxicas, gases inflamáveis, materiais instáveis e reativos. Sugeria o documento a necessidade de que autoridades e proprietários tivessem uma postura responsável e precavida, com a utilização de “precauções rotineiras” que levassem os primeiros a instalar um “sistema de prevenção de risco maior” e os últimos a envidar esforços práticos na prevenção de futuros acidentes. Era salientada, especialmente, a importância da participação dos trabalhadores como condição da sua adequação e eficácia.
A redução e limitação dos impactos dos acidentes ampliados exige, assim, planejar e aplicar de forma avaliativa os requisitos constantes do planejamento, que deve contar com a participação de empresas, autoridades e trabalhadores de forma adequada a cada situação local ou nacional. Esta condição leva a que a efetiva realização dos planos e das ações de prevenção e de resposta aos acidentes seja, de fato, variável, e que possa ser reafirmada a desigualdade de condições entre, por exemplo, instalações em regiões centrais ou periféricas, como assinala a FUNDACENTRO (2002), “circunstâncias locais e disponibilidades de recursos financeiros e técnicos determinarão o ritmo e a extensão da sua aplicação”.
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2.2 - A necessidade do gerenciamento de risco para viabilizar respostas a acidentes ampliados
Responder a acidentes ampliados implica a capacidade de gerenciamento dos riscos, entendendo-se este como um processo que integra e articula dimensões técnicas, políticas, sociais e económicas.
A Convenção 174 apontou uma direção para a disseminação das ações de “gerenciamento” de riscos. Iniciou uma recomendação de práticas mais informadas por preocupações éticas, configuradas por padrões mínimos de identificação de riscos e perigos potenciais de acidentes até o estabelecimento de medidas de organização, controle, elaboração e implementação do planejamento de emergências.
[...] os empregadores deverão criar e manter um sistema documentado de controle de risco que preveja: a) identificação e estudo dos perigos e avaliação dos riscos, considerando inclusive possíveis interações entre substâncias; b) medidas técnicas que compreendam projeto, sistemas de segurança, construção, seleção de substâncias químicas, operação, manutenção e inspeção sistemática da instalação; c) medidas organizacionais que incluam formação e instrução do pessoal, fornecimento de equipamentos de segurança, níveis do pessoal, horas de trabalho, definição de responsabilidades e controle de empresas externas e de trabalhadores temporários no local da instalação; d) planos e procedimentos de emergência que compreendam: i) preparação de planos e procedimentos eficazes de emergência local, inclusive atendimento médico emergencial, a ser aplicados no caso de acidentes maiores ou de ameaça de acidente, com testes e avaliação periódicos de sua eficácia e revisão quando necessário; ii) fornecimento de informações sobre possíveis acidentes e planos internos de emergência a autoridades e órgãos responsáveis pela preparação de planos e procedimentos de emergência para proteção do público e do meio ambiente fora do local da instalação; iii) toda consulta necessária com essas autoridades e esses órgãos; e) medidas para reduzir as conseqüências de um acidente maior; f)consulta com os trabalhadores e seus representantes; g) a melhoria do sistema, incluindo medidas para a coleta de informações e análise de acidentes ou "quase-acidentes". As experiências assim adquiridas deverão ser debatidas com trabalhadores e seus representantes e registradas de conformidade com a legislação e as práticas nacionais. (CONVENÇÃO 174)
O planejamento de emergências torna-se assim uma atividade que faz parte de um conjunto de ações ligadas ao gerenciamento de riscos, devendo ter lugar tanto antes como depois da ocorrência de acidentes, com o objetivo de permitir uma
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resposta mais eficaz em situações futuras.
O planejamento ocorre em duas etapas: na primeira etapa, são formulados mecanismos de prevenção de acidentes, através de ações prévias que possibilitam a identificação de problemas que possam vir a estar na origem de acidentes. A segunda etapa trata da elaboração e preparação do plano de emergências, enquanto resposta organizada à ocorrência efetiva de acidentes. O plano de emergências constitui, de fato, a resposta a uma eventual falha dos mecanismos de prevenção. O planejamento e a gestão são indissociáveis e interdependentes. A eficácia de um e de outra dependem da sua estreita articulação.
Entretanto, apesar das recomendações, o gerenciamento de riscos e, mais especificamente, o planejamento de emergências não são realizados cotidianamente. Os modos da sua realização variam em função do contexto, incluindo a importância que é atribuída, num contexto particular, a essas atividades, os recursos que lhe são dedicados e o efetivo compromisso com a segurança de instalações, equipamentos, trabalhadores e populações vizinhas. É possível, por isso, e ocorre com alguma frequência, que o planejamento de emergências corresponda mais ao cumprimento formal de exigências legais do que a uma efetiva capacitação para a prevenção de acidentes e resposta a estes, se e quando eles ocorrerem.
Uma outra linha de resposta aos acidentes seria, em princípio, constituída pelos planos de emergências sob a responsabilidade da Defesa Civil dos Estados, que permitem mobilizar bombeiros, militares e outros atores em situações de emergência. Acontece, porém, que é em geral deficiente ou inexistente a sua capacidade para realizar ações que se podem tornar necessárias quando da ocorrência de acidentes ampliados, como contenção de pessoas, isolamento de áreas e socorro às vítimas. Esta parece ter sido uma característica da resposta ao acidente radioativo de Goiânia.
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CAPÍTULO III – O ACIDENTE RADIOATIVO DE GOIANIA: AS RESPOSTAS
O acidente radioativo de Goiânia se configurou mundialmente como o maior acidente até hoje verificado ligado a contaminação por radioatividade sem ligação a acidentes ou fugas de materiais radioativos de centrais nucleares. O nuclear e a radioatividade passaram, na sequência deste acidente, a ser considerados a partir de uma perspetiva que havia escapado ou que tinha sido ignorada por decisores políticos e peritos. Essa perspetiva era a do público leigo, dos cidadãos entendidos apenas como meros consumidores das decisões e ações. O caso obrigou a considerar a possibilidade de ocorrência de um acidente radioativo grave num lugar muito distante de qualquer central nuclear e, em princípio, salvaguardado da exposição a radioatividade7 se pudessem sentir tão próximas as conseqüências de um acidente radioativo grave. Foram mais de 2000 as pessoas atingidas. As vítimas, o Estado de Goiás e, depois, os demais Estados brasileiros se viram envolvidos nos debates e discussões sobre a assistência aos afetados pelo acidente e sobre o destino a dar ao lixo radioativo que estava na origem do acidente.
Amplamente divulgado, este caso se tornou pauta de um debate que, em pleno processo de democratização do país8, arrastou a discussão sobre a segurança, importância, localização de equipamentos e instalações nucleares, no Brasil e em outros países.
O impacto do acidente radioativo de Goiânia gerou profundas alterações no cotidiano da comunidade. Ele obrigou a comunidade, especialmente a goianiense, a envolver-se nas discussões sobre um tema que, estava afastado das preocupações cotidianas dos cidadãos. O assunto, até então, dada a sua complexidade científica e técnica, parecia inacessível ao debate público alargado. O acidente, contudo, transformou-o em tema com presença diária e com grande visibilidade na mídia. Para além das suas conseqüências negativas, o acidente desencadeou um envolvimento inédito dos cidadãos com um tema aparentemente alheio à sua
7Goiânia situa-se na região centro-oeste do País, no Estado de Goiás, e as centrais nucleares do Brasil estão instaladas na região sudeste, no município de Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro. A distância aproximada é de 1000 km.
8Em 1980, após 16 anos de ditadura, foi iniciado o processo de democratização no Brasil. O acidente radioativo de Goiânia ocorreu em 1987: as políticas públicas eram ainda fortemente centralizadas e o processo de descentralização político-administrativa estava apenas se iniciando.
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capacidade de compreensão, e que levou à exigência de respostas pelo Estado e pelas instiuições públicas. .
A retomada dos aspectos históricos do acidente radioativo de Goiânia traz a possibilidade de examinar a importância da opinião e da ação da população para a legitimação do processo de democratização, mas também as formas alternativas utilizadas naquele contexto para a afirmação da credibilidade dos órgãos governamentais através das suas respostas ao acidente.
3.1 – O acidente radioativo de Goiânia: Um breve histórico9
No período de 1972 a 1984, o Instituto Goiano de Radioterapia - IGR funcionou em um imóvel alugado na Avenida Paranaíba, na região central da capital do Estado, Goiânia. Em 1984, a Santa Casa de Misericórdia, então proprietária do imóvel, vendeu-o ao IPASGO10, levando os então locatários a transferir o IGR para outro local. Segundo Costa Neto e Helou (1995) e Chaves (1998), no processo da transferência, o IGR deixou no local, equipamentos que já não utilizava, entre eles um aparelho de radioterapia.
No ano de 1987, no dia 13 de setembro de 1987, dois catadores de papel e de sucata das ruas da cidade, Roberto Santos Alves e Wagner Mota, penetraram nos escombros do IGR, que estava em processo de demolição, e descobriram um “objeto”, aparentemente um aparelho pesado envolto por chumbo, e que para olhos “periciais” seria facilmente identificado como uma máquina utilizada para fazer radiografias11. Retiraram o equipamento, que pesava aproximadamente 200 kilos, dividindo-o em duas partes e, para o seu transporte, utilizaram um carrinho de mão. Em “duas viagens”12, o levaram para a casa de Roberto para realizar o desmonte da “peça,” visto que é prática corrente entre os catadores desmontar seus achados para
9 Os parágrafos seguintes baseiam-se em Garcia e Miguel, (1993) e Costa Neto e Helou, (1995).
10 Instituto de Assistência dos Servidores Públicos do Estado de Goiás, órgão responsável pela assistência à saúde dos servidores públicos do Estado de Goiás.
11O aparelho, segundo petição do Ministério público, foi deixado naquele local pelos ex-proprietários da clínica, que ao transferirem a sede do Instituto radioterápico para outro local, abandonaram o aparelho, considerado obsoleto, sem procederem à comunicação, obrigatória, aos órgãos oficiais- neste caso à Comissão Nacional de Energia Nuclear-CNEN e à Secretaria Estadual de Saúde do Estado de Goiás.
12È comum na região centro-oeste do Brasil, utilizar o termo “duas viagens” para demonstrar que a pessoa realizou determinada ação em duas vezes. Neste caso a “viagem” foi realizada pelos catadores que utilizaram um carrinho de mão para carregar a “peça”.
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tentar obter mais valor com a venda, por exemplo, das peças separadas de uma máquina ou aparelho.
Os dois catadores iniciaram o desmonte do aparelho rompendo a cápsula de Césio-137 que este continha, contaminando as pessoas vizinhas da residência de Roberto, na rua 57, e também da residência de Wagner, na rua 64, ambas no setor central. Passados cinco dias, com o intuito de vender a peça, levaram-na à Rua 26-A, Qd 2, no Setor aeroporto, a um ferro-velho13 de propriedade do senhor Devair Alves Ferreira (Ferro-velho 1), local que também funcionava como depósito da Comércio de Aparas de Papel Ltda – COPEL. Aí concluem a abertura da “peça”, deparando-se com um “Intenso brilho azul vindo de dentro da cápsula de aço. Atraído pela beleza e magia da luminosidade, Devair teve a sensação de que possuía algo valioso ou talvez sobrenatural” (Garcia e Miguel, 1993: 28). Devair transportou a cápsula para o interior de sua residência e, durante três dias, “vários vizinhos, amigos e parentes foram convidados a ver aquela peça como uma curiosidade”. Ao conseguir retirar da cápsula grânulos brilhantes que se esfarelavam, Devair presenteou amigos e parentes, levando cada um deles um “pedaço” de Césio-137 para suas respectivas casas. Parte da peça foi transportada por Kardec Sebastião dos Santos para a rua 6 no setor Norte ferroviário, para o Ferro-velho (Ferro-velho 2) de Ivo Alves Ferreira, irmão de Devair. Parte do chumbo retirado da peça foi vendida também para outro Ferro-velho localizado na parte extrema de Goiânia – na saída para a cidade de Goiás. (Ferro-velho III).
A contaminação prosseguiu, assim, através das redes de relações dos já contaminados: Kardec empreendeu uma viagem a Anápolis, dando prosseguimento à contaminação. Pouco tempo depois Kardec e sua companheira Luisa manifestaram sinais de doença e deixaram seus filhos, também já contaminados, ao cuidado de amigos, que por sua vez se contaminaram.
No Ferro-velho 1, encantado com o brilho intenso do pó, o proprietário
13Nos ferros velhos de Goiânia são realizadas a compra e venda de ferros, metais, peças de carros, motos e bicicletas. Este Ferro-velho funcionava também como depósito de papel para a firma COPEL. “È necessário ter em conta que a denominação de ferro velho, dada a esse gênero de estabelecimento, refere-se apenas a uma atividade genérica e que não o caracteriza integralmente, visto que ele é, simultaneamente, um misto de ferro-velho, papeleira e também local onde se podem encontrar os mais diferentes tipos de sucata. As ”mercadorias” podem circular do ferro-velho para o consumidor, ou por outros estabelecimentos similares, como ocorreu com parte do equipamento contaminado, transferido para o ferro-velho situado no Setor dos Funcionários. Podem ainda ser adquiridas por empresas modernas que fazem a reciclagem de sucatas, como aconteceu com parte dos papéis usados, contidos no ferro-velho de Devair Alves Ferreira.” (Chaves, 1995:43)
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partilhou-o com seu vizinho Edson Nunes Fabiano, que por sua vez presenteou seu irmão Ernesto Fabiano com fragmentos do elemento radioativo.
Os sintomas já começavam a se manifestar: náuseas, vômitos, queimaduras, diarréia. Não obtendo melhora com os remédios caseiros de costume, nem com os farmacêuticos a que habitualmente recorriam, procuraram hospitais, que inicialmente trataram o problema como sendo decorrente de ingestão de alimentos estragados, ou como doença de pele, e finalmente como doença tropical.
Em 29 de setembro, a esposa do proprietário do Ferro-velho Devair, Maria Gabriela Ferreira, já desconfiada de que o pó poderia ser o causador dos problemas de saúde que atingiam seus parentes e amigos, acondicionou o restante do “pó” em um saco plástico e, juntamente com Geraldo Guilherme da Silva, funcionário do Ferro-velho de Devair (Ferro-velho 1), levou-o em um veículo utilizado para transporte urbano coletivo para a Coordenadoria de Vigilância Sanitária, órgão vinculado à Secretaria de Saúde do Estado de Goiás.
Deixando um rastro de contaminação por onde passaram, desceram do ônibus duas quadras antes do prédio da Vigilância Sanitária, tendo o Senhor Geraldo transportado a “peça” no seu ombro até a mesma ser depositada na mesa de trabalho de um funcionário, e depois colocada em uma cadeira, até que se “resolvesse” a situação:
[...] colocaram-na num saco de plástico e, depois de tomarem um ônibus coletivo, seguiram naquele dia, pela última vez, rumo à vigilância sanitária, então localizada à Rua 16-A, setor Aeroporto. Ao descerem do ônibus, Geraldo colocou o embrulho sobre os ombros e desta forma o transportou até aquele órgão. No interior do prédio da vigilância sanitária, após o pacote ser colocado sobre a escrivaninha do veterinário Paulo Monteiro.(...) assustado com as expressões de Maria Gabriela, ele o removeu para o pátio da vigilância sanitária, colocando-a sobre uma cadeira junto ao muro. Ali a fonte radioativa permaneceu durante um dia. (GARCIA e MIGUEL, 1993: 32)
Paulo, funcionário da vigilância sanitária, contatou médicos que indicaram um físico que estava a passeio na cidade, e que possuía conhecimento na área de radiação, Walter Mendes Ferreira, que, após conseguir um cintilômetro “emprestado” no Escritório Regional da Nuclebrás, verificou “que a aproximadamente 100 metros da vigilância Sanitária, o detector indicava sinais de radioatividade”. (FUNLEIDE, 1988).
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Ilustração 2 - Fonte de Radioatividade em cima da cadeira na Vigilância Sanitária14
O físico solicitou outro aparelho que permitisse uma medição mais rigorosa e confirmou o alto índice de radioatividade. Informado por Maria Gabriela sobre o local da retirada da peça, o antigo IGR, procurou um dos ex-proprietários e confirmou que “sua antiga clínica havia sido transferida, mas a unidade de Césio havia ficado no local”. (FUNLEIDE, 1988). Confirmou-se aí a ocorrência do acidente que, segundo Chaves (1998:66), em termos de “radiação liberada - radiação gama, havia sido o maior já registrado”.
As autoridades governamentais na esfera federal foram contactadas. Até à sua chegada, as autoridades estaduais, procederam ao isolamento dos possíveis locais de contaminação. Assim na madrugada do dia 30 de setembro, as famílias vítimas de radiação foram “convidadas”, pela Polícia Militar do Estado de Goiás - PM-GO, juntamente com a Vigilância Sanitária, a se retirarem de suas residências, sob o pretexto de que haveria um vazamento de gás:
Fomos acordados de madrugada pelo estranho movimento da rua. Pelas janelas vimos o movimento de pessoas sendo retiradas de
14Paula, Lourisvaldo (16/10/1987)
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suas casas por Policiais e Corpo de Bombeiros. Havia luzes das sirenes de ambulância e muito movimento na rua. Ninguém sabia o que estava se passando. (ENTREVISTA Nº 1). (CHAVES, 1995: 33)
Somente cerca de 16 dias depois da abertura da cápsula de Césio-137, as autoridades e a comunidade vieram a tomar conhecimento da situação. Refere o relatório da Comissão Nacional de Energia Nuclear-CNEN15 sobre o acidente radioativo de Goiânia:
O manuseio direto da fonte ou de parte dela, a comercialização de materiais contaminados, os contatos sociais e/ou profissionais entre pessoas, a circulação de animais, ventos e chuvas, foram as principais vias de dispersão do Césio-137. (CNEN, 1988: 1)
Gerou-se, assim, um clima de pânico na cidade, com pessoas reunidas no centro da cidade, no ginásio Olímpico, para ter a certeza de que não estavam contaminadas, e muitas submetendo-se a descontaminação16. Cresceu a atenção de cientistas em relação ao acidente e a Goiânia, com a presença de equipes da CNEN, bem como de técnicos estrangeiros.
O pânico que a população Goianiense enfrentava era tamanho, que no Estádio Olímpico, formavam-se imensas filas para monitoração. Esse trabalho durava cerca de 12 horas por dia, ininterruptamente.(FUNLEIDE, 1988a)
A contaminação foi disseminada através de uma teia de relações pessoais (do contato físico entre as pessoas que manusearam a fonte radioativa) e de uma teia de relações comerciais (através da venda, compra e circulação de mercadorias contaminadas). A situação era inusitada, e ficava claro para a população o despreparo técnico-político para lidar com uma situação de emergência como a que estava ocorrendo. As informações que circulavam eram, por vezes, contraditórias: havia técnicos a emitir pareceres que, com frequência, discrepavam dos laudos de
15 A CNEN é uma autarquia federal ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia que regulamenta e fiscaliza a distribuição e execução de “produtos radioativos” Este órgão, vinculado ao Ministério das Minas e Energia, entre outras funções, é responsável por emitir normas, licenças e autorizações relativas a instalações nucleares; posse, uso, armazenamento e transporte de material nuclear; comercialização de material nuclear, minérios nucleares e concentrados que contenham elementos nucleares. Fonte; http://www.cnen.gov.br. Acesso em setembro de 2006.
16 Segundo o depoimento do físico nuclear Carlos Eduardo de Almeida, os contaminados foram lavados com água, sabão e vinagre, e para os calcanhares, onde havia possibilidade de se acumular matéria radioativa, foi utilizado pedra-pomes. (GABEIRA, 1987).
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outros colegas17.
3.2 – Estratégias de atuação dos órgãos governamentais:
O primeiro passo para resolver o problema foi o de identificar os afetados e delimitar o público alvo das respostas ao acidente: Num primeiro momento foram traçados, através de entrevistas com os contaminados, os possíveis locais de contaminação direta. As áreas consideradas como focos radioativos, foram evacuadas, isoladas, e as pessoas nelas residentes devidamente monitoradas:
As principais medidas acionadas visavam, prioritariamente, atendimento médico às vítimas e o isolamento das áreas, buscando “minimizar os caminhos críticos pelo quais outras pessoas pudessem ser afetadas pela exposição a radiação e/ou contaminação.(CNEN, 1988: 1)
Diante da gravidade e complexidade do acidente, “o processo de descontaminação desses ambientes tornava-se extremamente difícil, visto que o conhecimento estabelecido sobre o assunto, além de limitado, era teórico” (Chaves, 1995: 55). Era, pois, real o alto grau de dificuldade de localização dos pontos contaminados e também o desconhecimento sobre as diversas formas como a contaminação, para além do contato, poderia ter ocorrido: pelo solo? Pela água? Pelo vento?
A CNEN, no Rio de Janeiro, foi contactada a propósito do acidente ainda na tarde do dia 29, e o Governo do Estado de Goiás, na esperança de resolver rapidamente o problema, resolveu viabilizar outras alternativas de ação, para o que se
realizou (…) uma reunião no gabinete do Secretário de Saúde, onde foi acionada a Defesa Civil, decidindo que as áreas seriam isoladas, iniciando-se pelo região onde se situava a Vigilância Sanitária, Ferro Velho do Devair e Adjacências. (FUNLEIDE,1988)
Inicialmente, foram isoladas as seguintes áreas: o prédio onde se localizava a Vigilância Sanitária, a residência de Roberto e de Wagner, o Ferro-velho de Devair e
17 Chegou assim a ser afirmado que o lençol freático não estava em hipótese alguma contaminado. Outro técnico, a seguir, sugeriu a possibilidade da sua contaminação. Estas posições contraditórias geraram confusão e insegurança, abalando a confiança, por parte da população leiga, nos técnicos.
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o Ferro-velho de Ivo, a casa de Ernesto Fabiano e a casa de Edson, o ponto de ônibus em que Maria Gabriela e Geraldo passaram com parte da peça radioativa, entre outros:
Ao amanhecer do dia 30 os principais focos estavam isolados, a saber: -Rua 57, casa 68, Setor Central;
-Rua 17-A, Quadra 70, lote 26-B- Setor Aeroporto;
-Rua 6, quadra Q – Lote 18 - Setor Norte Ferroviário;
-Rua P-19, Quadra 92 – Lote 4- Setor dos Funcionários;
-Rua 16-A, número 792, - Vigilância Sanitária;
-Rua 63 – Casa 179 – setor Central; e
-Rua 26-A, Quadra Z, Lote 30 – Setor Aeroporto. (CNEN,1988:16)
Iniciava-se aí uma espécie de procedimento padrão: no Estádio Olímpico, localizado na região central da cidade e próximo à área afetada, foi montado um acampamento com tendas e equipes de atendimento para receber as pessoas que haviam sido retiradas de suas residências contaminadas, e também para realizar triagem, com o objetivo de verificar o grau de contaminação das pessoas.
A partir da interdição das áreas contaminadas no dia 29/09 de 1987 pela PM-GO, acompanhada e dirigida pelo físico que havia identificado a peça radioativa na Vigilância Sanitária, os moradores das residências foram transferidos para o Estádio Olímpico e alojados em sete (07) barracas de lona. Inicialmente, a distribuição nas barracas foi feita levando em consideração o grupo familiar. Posteriormente, com a chegada (no dia 30/09) de técnicos da CNEN o critério foi o grau de contaminação [...] (FUNLEIDE, 1988)
Iniciou-se então o processo de aferição de grau de radioatividade, e 10 pessoas com alto grau de radioatividade foram encaminhadas ainda no dia 30 para o Hospital Geral de Goiânia-HGG. Nesta mesma data, a CNEN chegou à cidade de Goiânia e iniciou o trabalho de descontaminação “in loco” com a utilização de vinagre, água e sabão neutro.
Neste ínterim, também a população goianiense, já havia se informado do caso através da mídia e foi convocada a comparecer ao Estádio Olímpico para realização de “triagem” e de descontaminação externa. Ênfase especial era dada à necessidade de monitoramento dos moradores do entorno de regiões contaminadas ou de pessoas que haviam tido contato direto com as vítimas, ou com os locais
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contaminados, especialmente com os ferros velhos18.
Um plano de emergência começou a ser instaurado: mais técnicos da CNEN foram convocados, com a solicitação de reforço médico à Nuclebrás19, dando prosseguimento ao isolamento de áreas com focos radioativos e à localização e ao monitoramento de possíveis áreas contaminadas.
Foram identificadas 249 vítimas diretas de contaminação. Num primeiro momento, as vítimas mais graves eram atendidas no HGG e no Hospital de Doenças Tropicais - HDT20. As demais pessoas com grau de contaminação “mais brando”, ou que deixaram de ter acesso às suas casas e aos seus bens foram instaladas em instituições públicas: o Centro de Recuperação Feminina - CRF21 para pessoas que estivessem em estado menos crítico e o Albergue22, para pessoas que estivessem com suas casas interditadas.
Em 01 de outubro, dois pacientes mais graves foram transferidos do HDT para o Hospital Naval Marcílio Dias - HNMD, no Rio de Janeiro, instituição pertencente à Marinha que possui uma ala para atendimentos a emergências nucleares23. Mas mesmo os médicos especialistas do HNMD sentiam-se inseguros diante do quadro que se apresentava:
(...) Mesmo no Hospital Naval Marcílio Dias (HNMD) instituição preparada para emergências radioativas e que contava com assistência internacional, “muitos afirmaram que sentiam dificuldades de passar da teoria à prática”. (CHAVES, 1998:100)
Em 02 de outubro, foi solicitada assistência internacional à Agência Internacional de Energia Atômica - AIEA, por meio do representante da missão
18Devem ser mencionados, em particular, os catadores de papéis, que utilizavam carrinhos para catar papéis, ferros e outros materiais que seriam vendidos aos Ferros-Velhos. No auge do acidente, por medo da doença, da discriminação, de ficarem sem seus “carrinhos”, que eram sua fonte de renda, eles não se manifestavam. Foi necessário realizar uma campanha em que profissionais de Serviço Social que trabalhavam junto daquela população e em quem ela confiava procuravam esclarecer sobre a importância da apresentação para descontaminação.
19A Lei nº 6.189, de 16 de Dezembro de 1974 especifica que a União exercerá o monopólio nas questões que envolvam energia nuclear através da CNEN e da NUCLEBRÀS. À primeira cabe a orientação, planejamento, supervisão, fiscalização e pesquisa científica. A NUCLEBRÀS e suas subsidiárias exerceriam o papel de órgãos de execução. Assim a Nuclebrás é, no Brasil, uma das empresas que mais conhecimentos e competências possuem no domínio da radioatividade.
20Ambos eram Hospitais públicos de Goiânia. Pelo que consta dos relatórios e jornais da época, o Sistema Público de Saúde Estadual estava passando por uma greve, com os servidores da saúde reivindicando melhorias salariais.
21Local que era destinado a atendimento a adolescentes femininas que cometeram ato infracional (delitos), e que estava desativado.
22O Albergue Bom Samaritano era uma instituição recém-construída, e ainda não inaugurada, que foi disponibilizada para atender à situação.
23 Esta ala de emergência foi criada para o caso de uma emergência nas Centrais Nucleares em funcionamento em Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro.
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brasileira.
A CNEN monitorou 112.800 pessoas em Goiânia, identificando 249 pessoas com nível de contaminação acima do normal, 20 foram hospitalizados, sendo que uma delas (Roberto Santos, 21 anos) teve o antebraço direito amputado e 4 faleceram.”24 [...] quando as duas primeiras vítimas faleceram, os patologistas do hospital se recusaram a realizar as necropsias devido ao risco de contaminação. O Departamento de Medicina legal da Universidade de Campinas foi convidado a participar como órgão pericial oficial no caso [...] no que foram assessorados por físicos da CNEN”. (Et@llcorp, 2004)
Dentre as vítimas em estado mais grave, faleceram, em 23 de outubro de 1987, Maria Gabriela Ferreira e Leide das Neves Ferreira (Mourão, 2002). O caixão das duas primeiras vítimas, envolto em chumbo, teve seu cortejo acompanhado por protestos de cerca de 2000 pessoas residentes no entorno do cemitério onde as vítimas seriam enterradas. Essas pessoas manifestavam-se contra o sepultamento das vítimas naquele local e recorriam a pedras, cruzes e parte das sepulturas para “atacar a caminhonete blindada que transportava os caixões”.
Foi necessária a utilização de forte aparato policial para garantir que às vítimas se desse um velório e enterro dignos e que aos familiares, especialmente à mãe de Leide, fossem garantidos o direito de se aproximarem do caixão e que os restos mortais de seus entes queridos fossem depositados em local adequado.
A lembrança do enterro de Leide das Neves é particularmente dolorosa para a mãe, Lourdes das Neves Ferreira, porque o Cemitério Parque foi transformado em um campo de guerra por cerca de 2 mil manifestantes, que não queriam que os corpos fossem enterrados no local por medo de contaminação, apesar de os caixões serem revestidos com chumbo e os túmulos, concretados.
(BORGES, 2007)
Foi manifesto que, por parte da população, existia um forte sentimento de revolta e de medo, que por sua vez se traduziu em preconceito e em discriminação.
Mas a discriminação não era apenas pessoal e local, tornou-se nacional, através do boicote às compras de mercadorias provenientes de Goiás e da dificuldade na deslocação de pessoas para outros locais, tanto no Brasil como para o exterior, tendo alguns países, como a Itália, exigido atestado de não contaminação radioativa para pessoas oriundas de Goiânia.
24Leide das Neves, 6 anos, foi a primeira a falecer, seguida de sua tia Maria Gabriela, e a seguir deu-se o falecimento dos dois funcionários do Ferro-velho, Israel Batista e Admilson Alves.
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Não só as vítimas do acidente do Césio-137, mas a cidade de Goiânia, o Estado de Goiás, também se tornaram vítimas de uma discriminação, agora também no plano comercial. Isto em função, sobretudo, da falta de preparo das equipes designadas para lidar competentemente com o problema, em função da forma atabalhoada como o governo do Estado coordenou a divulgação das informações e em função, finalmente, de setores da imprensa. (Costa, 2001:52).
3.3 – As abordagens institucionais ao acidente
Para realização dos trabalhos de assistência e descontaminação, foram recebidos trabalhadores voluntários das mais diversas áreas, e também designados funcionários públicos de diversos órgãos estaduais (que estivessem dispostos a realizar o trabalho), sendo estes provenientes da Organização de Saúde do Estado de Goiás - OSEGO, Consórcio Rodoviário Intermunicipal S/A-CRISA25, PM-GO26, entre outros27. O apoio federal se deu especialmente por meio da CNEN28, Centrais Elétricas S.A.-FURNAS29, Nuclebrás, Defesa Civil30 e a Ala de Emergência do HNMD.
É de notar que muitos dos envolvidos nestes trabalhos não tinham noção da gravidade da situação, estando vulneráveis à contaminação na medida em que não utilizavam equipamento de proteção individual, e não foram notificados dos riscos de exposição.
A forma como seria realizado o atendimento foi sendo construída no decorrer
25O CRISA foi a instituição responsável pela manutenção da infra-estrutura rodoviária, e que mobilizou as suas maquinas pesadas e funcionários para as operações de demolição e de recolha dos resíduos radioativos.
26A Policia Militar do Estado de Goiás acompanhou todo o processo, garantindo segurança pessoal das vítimas e segurança social às demais pessoas: garantia o isolamento das áreas e o isolamento de pessoas que ainda não haviam passado pelo processo de contaminação.
27Na esfera estadual, a Organização de Saúde do Estado de Goiás –OSEGO, instituição responsável pela gestão na área da saúde, possuía uma estrutura equivalente à atual Secretaria Estadual de Saúde. Esta instituição designou técnicos de diferentes áreas, recursos materiais e financeiros para a mitigação da situação.
28A CNEN tem como função precípua a verificação, a normatização, e fiscalização de todas as atividades que envolvam a energia nuclear. Deste ponto de vista, após ser informada oficialmente do acidente, esteve presente durante todo o processo de descontaminação, verificação de irregularidades, destinação dos rejeitos radioativos, e atendimento às vítimas.
29FURNAS é uma empresa pública de economia mista (51 % das ações são do Estado), responsável a nível nacional pela geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, o que significa ser responsável também pelas usinas termoelétricas em atividade no país. Foi relevante a sua atuação, com equipamentos e experiência técnica adequados a lidar com problemas de radioatividade.
30A Defesa Civil do Estado de Goiás e a Defesa Civil do Estado do Rio de Janeiro atuaram conjuntamente na organização das ações emergenciais de descontaminação, de localização e isolamento dos focos radioativos e do seu depósito.
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do processo de conhecimento e reconhecimento dos problemas. A Defesa Civil foi a primeira, talvez pelo agravamento da situação de caos, a se preocupar com a necessidade do apoio social à comunidade goiana:
A defesa civil traçou todas as estratégias visando facilitar os trabalhos da CNEN em Goiânia. Também foi ela que percebeu a necessidade de se formar uma equipe social para dar suporte aos trabalhos a serem realizados em Goiânia.(FUNLEIDE, 1988).
As primeiras formas de se abordar a questão foram definidas a partir de reuniões e discussões apenas com as autoridades locais. O caráter emergencial da situação e a ausência de um plano para ocorrências desta natureza levaram estas autoridades a fixar como principal objetivo a resolução dos problemas que, no momento, se faziam mais urgentes: era preciso dar respostas imediatas à população, que se dividia em vítimas diretas, trabalhadores das áreas, população em geral. Assim, “nesta etapa o atendimento não foi planejado metodicamente uma vez que os acontecimentos se sobrepunham a qualquer planejamento”. (FUNLEIDE,1988).
Neste percurso, o primeiro momento foi destinado ao encaminhamento dos contaminados para triagem, remetendo-os em seguida para locais adequados ao seu estado de saúde e à sua situação. Para organização destes atendimentos, o Governo do Estado contou com o apoio de órgãos estaduais e federais que, no decorrer do mês de outubro, através de uma equipe médica, uma equipe de assistentes sociais e uma equipe de psicólogos, auxiliaram na resolução dos problemas biopsicossociais que se avolumavam dia-a-dia.
Outra providência foi a ativação de um serviço de atendimento telefônico de emergência -191- que esclarecia dúvidas e recebia denúncias sobre possíveis casos de contaminação. Esta medida procurou responder ao receio de muitas pessoas de assumir a contaminação por medo das conseqüências que isso poderia lhes trazer (isolamento ou perda dos bens pessoais, por exemplo):
Um homem relatou apavorado, que acompanhava pela imprensa as notícias sobre alguns de seu familiares, radioacidentados e hospitalizados, enquanto percebia o agravamento progressivo das radiodermites em suas próprias mãos. Faltava-lhe coragem para apresentar-se e identificar-se como vítima do acidente radiológico. Por três vezes titubeou em fazê-lo, até que encorajado por um parente submeteu-se à monitoração no Estádio Olímpico. “Era muito
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grande aquele medo que eu tinha de falar com o médico e saber aquela resposta afirmativa da minha contaminação. (COSTA NETO e HELOU apud CHAVES, 1995:51)
Um dos grandes desafios enfrentados pelas autoridades foi o de formar uma equipe de saúde para atuar com os radioacidentados:
Formar a equipe de saúde para atuar na emergência do acidente radiológico foi a primeira grande dificuldade atrelada ao evento. Poucos profissionais estavam disponíveis para o enfrentamento do “perigo” que espreitava a cidade. A carência de informações adequadas dava asas à imaginação e fomentava o medo do desconhecido. Os voluntários foram chegando aos poucos, à medida que a impressão negativa causada pela divulgação sensacionalista da imprensa sobre os efeitos da radiação ia sendo vencida pelas informações e pelo profissionalismo.(COSTA e NETO e HELOU, 1995:11).
Outro desafio foi o de criar, de forma emergencial, modos de agir, abordagens que fossem compatíveis com a situação e que demonstrassem segurança, competência, e que acima de tudo, fossem credíveis para o conjunto da população. Essas atividades eram muito diversas, incluindo encaminhamentos, organização de locais para recebimento de pessoas desalojadas de suas casas, apoio psicológico a pessoas que por estarem com nível de contaminação diferenciada foram separadas de seus entes queridos; acompanhamento das vítimas às suas casas “condenadas” para arrolar os bens com vistas ao seu ressarcimento futuro (e lidar com as perguntas sobre quem arcaria com este ressarcimento), lidar com as inseguranças e com os medos, com a incerteza em relação ao futuro.
3.3.1 – A abordagem médica:
Em um primeiro momento a abordagem médica se direcionou para a realização da triagem com conseqüente atendimento e encaminhamento médico. Pacientes claramente infectados foram enviados diretamente ao HGG, ao Hospital Santa Maria, e os demais para o Estádio Olímpico, local onde eram sujeitos à avaliação externa (levantamento radiométrico). Após o diagnóstico, eram submetidos ao processo de descontaminação com a utilização de vinagre, água e sabão neutro. Naquele local era ainda realizada avaliação clínico-laboratorial (coleta de sangue, e de excretas para verificação de contaminação interna). Depois de passarem por uma
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“avaliação de exposição interna e externa31, as vítimas eram encaminhadas para tratamento/assistência por níveis de atendimento dependentes da gravidade da sua condição.
Quadro 1 - Nível de atendimento com referência ao local de destinação do paciente contaminado.
Nível de atendimento
Locais de Encaminhamento
Observações:
Primário
FEBEM- CRF
ou
Albergue
O nível primário se refere a vítimas com contaminação interna e externa, mas que em sua maioria tinham sido desalojadas;
Secundário
HGG
Pacientes que possuíam radiodermites e“comprometimento hematológico”- de leve a moderado.Contaminação interna e externa severas.
Terciário
HNMD
Vítimas com comprometimento do sistema hematopoiético.
Fonte:CNEN,1988.
No tocante aos casos mais graves, o atendimento hospitalar foi, aos poucos, adequando-se à situação:
(...) foi-nos colocada a disposição uma ala da enfermaria de Cirurgia Geral onde alojamos as 11 vítimas mais criticamente envolvidas e que já estavam hospitalizadas.Juntamente com o grupo de radioproteção, fizemos um levantamento radiométrico dessa enfermaria que foi dividida em áreas quentes, mornas e frias32.(ANAIS,1988:21)
Pacientes graves que estavam no HDT e no Santa Maria foram transferidos para o HGG. Ainda de acordo com a CNEN (1988), foi necessario preparar simultaneamente uma equipe para lidar com a utilização de equipamentos adequados que prevenissem a contaminação pessoal: “uso de gorros, máscaras,
31Conforme o relatório oficial da CNEN, para avaliação de exposição externa eram realizadas coletas de sangue para a “dosimetria citogenética” – medida de radioatividade presente nas células. Para a interna era utilizado o contador de corpo inteiro e a análise excreta (fezes e urina)
32Estes termos são utilizados para designar áreas com maior ou menor grau de radioatividade: Quente é a área com nível máximo de radioatividade; Morna, seria a área intermediária; Fria, a área considerada com índice de radioatividade normalizado.
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aventais, luvas, sapatilhas, bem como de filmes e canetas dosimétricas”. Diretamente ligados ao atendimento médico estavam os psicólogos que trabalhavam com as vítimas, que se viam sozinhas, isoladas e inseguras, com o receio de não saberem a verdade sobre o seu quadro de saúde e sobre os seus parentes e amigos, que estavam nos alojamentos em Goiânia ou no HNMD, no Rio de Janeiro.
3.3.2 – A abordagem Psicológica:
A equipe de psicólogos começou a atuar a partir da terceira semana pós-acidente. Sua atuação pautou-se por reduzir a ansiedade através da reflexão, com utilização de técnicas que dessem vazão aos sentimentos, minimizando o medo da morte e a crise frente a situação de isolamento, entre outros problemas.
Uma equipe de saúde foi formada às pressas para dar atendimento aos radioacidentados hospitalizados e albergados. Ao mesmo tempo, para atender a população que residia ou trabalhava nas proximidades dos focos de contaminação (cerca de 10 mil pessoas), foram criados os Núcleos de Apoio Psicológico e de Assistência Social [...] (COSTA NETO e HELOU, 1995:11)
Foram utilizadas as seguintes técnicas: escuta compreensiva, reflexão de sentimentos, técnicas de relaxamento, técnicas projetivas e, enfim, orientação psicológica. Todo o atendimento psicoterápico era, naquele período emergencial (outubro a dezembro de 1987), voltado para a contenção da situação de crise gerada pelo acidente, não possibilitando abordagens sobre comportamentos ou atitudes anteriores daqueles indivíduos. Todas as terapias eram centradas na sua condição presente.
As vítimas que estavam hospitalizadas, bem como aquelas que estavam no CRF ou no Albergue, conviviam com uma profusão de sentimentos: medo, depressão, raiva, revolta, insegurança, aliados ao fato de terem de coexistir diariamente com uma estrutura médica e policial33. Para além disso, toda a sua rede de apoio pessoal estava também “prejudicada” pela
33Mesmo as vítimas que estavam apenas alojadas em albergue ou no CRF necessitavam de assistência medica psicológica e de segurança policial. (inicialmente eram vigiadas, pois não podiam ter contato externo. Entretanto, os policiais zelavam também pelas vidas das vítimas que eram constantemente ameaçadas pelos vizinhos que temiam ser contaminados).
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quebra brusca da estrutura familiar e social, decorrente do isolamento. O lar havia-se esfacelado: a configuração geográfica da casa individualizada foi substituída por uma comunidade, em que nem todas as pessoas agrupadas tinham projetos e sentimentos afins, uma vez que os familiares haviam sido separados de acordo com a necessidade do tratamento. (COSTA NETO e HELOU, 1995: 17)
Esta situação caótica trouxe para algumas vítimas o desespero por não conseguirem encontrar solução em curto prazo para os seus problemas, e principalmente por não acreditarem no futuro.
A população goianiense, frente ao constante bombardeio de informações sobre os fatos ocorridos, sobre as possíveis conseqüências futuras na vida das pessoas e também de divulgação dos possíveis sintomas, iniciou um processo de reações psicossomáticas:
Segundo informação extra-oficial do físico Donald Binns, da CNEN, dentre as 112 mil pessoas monitoradas no Estádio Olímpico de Goiânia, no período de 30 de setembro a 21 de dezembro de 1987, cerca de 5 mil apresentavam sintomas de radiodermite, embora não estivessem contaminadas [...]. (COSTA NETO e HELOU,1995: 40)
O atendimento psicológico realizado na rua 57 (FUNLEIDE, 1988a), próximo às principais áreas contaminadas, procurava possibilitar às pessoas lidar com suas angústias e inquietações: “A assistência psiquiátrica foi muito importante, já que as vítimas viviam num estado de tensão e angústia constantes”
No que tange ao problema psicológico gerado pelo acidente radioativo de Goiânia, cabe destacar que o alcance da perda de cada uma das vítimas se tornou imenso: perderam seu espaço, seu lugar, seus parentes, seus amigos; e a partir de então passaram a conviver com uma herança de discriminação, preconceito, e com a incerteza do que poderiam lhes legar os dias seguintes. Ademais, perderam o valor do “lugar”, suas referências locais, vizinhos e “pedaços culturalmente definidos”. Transformaram suas vidas radicalmente de um dia para outro.
Quando o trabalho em Psicologia começou a ser realizado, já por volta da terceira semana após o acidente, os pacientes hospitalizados ou albergados encontravam-se em processo de despessoalização, com sério comprometimento da identidade, motivado pelo esfacelamento da estrutura familiar, pela ruptura das inter-relações, pela discriminação, pela perda dos objetos de uso pessoal, pela descaracterização do ambiente e do próprio organismo. O desejo de voltar a ter contato com o mundo se contrapunha ao
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medo da rejeição social. (COSTA NETO e HELOU,1995: 15)
A perda se revelou tão forte que a depressão, a angústia, o medo, a ansiedade passaram a ser uma sensação constante no cotidiano das vítimas do Césio-137. Costa Neto e Helou (1995:47) referem mesmo que 6% dos radioacidentados “declararam ter sentido vontade de morrer durante a fase crítica do acidente”
A estratégia política tácita para lidar com a questão foi a transformação do episódio em uma ausência, procurando os seus protagonistas evitar falar sobre o problema. Não se construiu uma identidade no bairro; não se privilegiou o retorno e apoio psicossocial continuado aos moradores, as vítimas foram subdimensionadas, pois um bairro inteiro se silenciou, tentando apagar aquele momento histórico-fatídico e assim reduzir suas “perdas”, visto que o acompanhamento psicológico foi mantido de forma mais universalizada apenas no auge do acidente (até dezembro de 1987), depois foi restrito ao grupo de vítimas mais diretamente atingidas34·.Esse atendimento, no auge do acidente, foi realizado tanto nas áreas públicas, com o atendimento no QG-Quartel General da 56,35 como também no Albergue e no CRF, mas foi limitando seu alcance no decorrer do processo, à medida que ia ficando restrito às vítimas diretas.
3.3.3 – A abordagem do Serviço Social
Diante da gravidade do problema o Governador do Estado de Goiás, mobilizou seus órgãos setoriais, a fim de que em estado de emergência prestassem serviços em socorro às vítimas do acidente e demais pessoas atingidas. Junto a Comissão Nacional de Energia Nuclear e ao SUDS, foi imprescindível a formação de uma equipe de Serviço Social para prestar serviços à população. Diante do estado de terror e pânico que gradativamente a população enfrentava com o medo da contaminação e irradiação, surgia, paralelamente, a discriminação social, os prejuízos materiais, sociais, psicológicos e outros.(FUNLEIDE,1988).
As primeiras dificuldades da equipe de Assistentes Sociais foram a identificação de profissionais dispostos a assegurar o apoio às vítimas. Assim, quando a equipe foi formada havia profissionais dos mais diversos órgãos e até alguns que se ofereceram como voluntários.
34As vítimas diretas passam a ter, a partir de dezembro, um órgão que assume a função de lhes prestar assistência exclusiva, a Fundação Leide das Neves - FUNLEIDE.
35Nome dado pela equipe social ao posto de atendimento psicossocial montado na rua 56.
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As vítimas mais diretamente atingidas foram privadas de suas roupas, objetos pessoais, casas, documentos e tudo o que a elas pertenciam. Os problemas sociais relativos à garantia de moradia, alimentação, vestuário e combate à discriminação social exigiam respostas urgentes. Segundo a FUNLEIDE, (1988), os danos materiais estenderam-se até a perda de documentos pessoais e essenciais à vida do cidadão, considerados rejeitos radioativos.
Inicialmente um grupo de Assistentes Sociais assessorou todo o monitoramento realizado no Estádio Olímpico. Após este primeiro momento, o acompanhamento passou a ser mais constante, encaminhando as vítimas, conforme relatório médico, para o local onde seriam instaladas (HGG, FEBEM, Albergue, entre outros).
Para realizar seu trabalho, a equipe social se instalou na sede da OSEGO, onde realizava o cadastramento e preenchia fichas sociais para avaliar o perfil socioeconômico, histórico e de saúde das vítimas, que estavam muito desnorteadas e inseguras, requerendo que os profissionais as acompanhassem a hospitais, laboratórios, nas transferências do CRF para o albergue ou nas altas médicas para o retorno à sua residência.
O Serviço Social acompanhou as vítimas na obtenção de novos documentos e, paralelamente a todo este processo, implementou um trabalho educativo, com palestras, para melhor informar a comunidade residente no entorno das áreas focos, a fim de minimizar ou até conter a discriminação contra as vítimas do Césio-137. Apesar de, em várias partes dos relatórios, serem claras as queixas da ausência de ligação entre as áreas, foi possível observar a existência de colaborações entre psicólogos e assistentes sociais.
3.3.3.1- Os pacientes alojados no CRF-FEBEM
Os Assistentes Sociais iniciaram sua atuação no CRF em 12 de outubro de 1987. Realizavam um trabalho multidisciplinar, enquanto equipe social, junto com psicólogos, um psiquiatra e outros especialistas.
Conforme indica o relatório da equipe social de 1988, as atividades se pautavam, dentre outras, pela realização de cadastramento e fichas sociais, orientação e acompanhamento dos casos, apoio psiquiátrico, reposição de documentos pessoais, buscas e denúncias, monitoração em domicílios, monitoração
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e orientação às crianças e adolescentes catadores de papéis, palestras e arrolamento de bens. A atuação da equipe ia no sentido de informar os ali alojados sobre os efeitos do Césio-137, bem como constituir uma rede de apoio, inclusive com realização de terapias ocupacionais, visto que os afectados se encontravam inseguros e incertos com relação ao seu presente (nomeadamente ao seu estado de saúde) e também ao seu futuro.
Os momentos mais difíceis para a equipe social e para as vítimas alojadas foram os do falecimento de pessoas que estavam internadas no HNMD, e também o da amputação do braço de uma das vítimas. Estes foram momentos de reativação da insegurança, do descrédito, do medo.
Quando do óbito de vítimas internadas no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, os pacientes do CRF se alarmaram devido os laços de parentesco e /ou amizade com os mesmos, sendo necessário a atuação psiquiátrica e psicológica de profissionais a fim de que a tensão fosse contida. (FUNLEIDE,1988)
A reabilitação de outras vítimas que estavam hospitalizadas e conseqüente transferência para o CRF minimizaram os receios e ansiedades dos “ali alojados”.
De acordo com a FUNLEIDE (1988), a vida em comum com pessoas diferentes trouxe também problemas de convivência para o grupo que ali coabitava: “não aceitação uns dos outros, intensificação de problemas psiquiátricos, agressões físicas, etc.”
Providências no sentido de indenizar os alojados que teriam perdido bens materiais foram realizadas. O arrolamento dos bens foi feito juntamente com cada vítima e o Assistente Social acompanhava cada procedimento, que consistia em ir até a residência do indivíduo lesado e juntamente com ele elaborar uma relação de bens a serem repostos por meio de substituição ou indenização. Os documentos não deixam de dar a ver o sentimento de tristeza que nutriam não só as vítimas, mas também os profissionais, quando realizavam as atividades de arrolamento de bens:
[...] Cada objeto tem as impressões da vida e experiência da pessoa. Um pedaço de papel, uma carta antiga, uma fotografia (talvez amarelada pelo tempo), uma cabeça de boneca, brinquedos... tudo, tudo está carregado de emoções, de lembranças, de vida...
De vida que se transformou em morte...
De morte que será vencida e das cinzas nascerá nova vida, nova esperança, novas alegrias.
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Por isso é preciso que o homem se torne mais homem. Que a verdade seja vivida, que o amor seja cultivado, que a vida seja um direito, que a esperança nunca seja tirada de nossos corações.
É preciso que nossos valores sejam reavaliados e que os verdadeiros valores sejam descobertos novamente pelo homem.
É preciso que o concreto que nos tem tornado egoístas seja quebrado com laços de amor e fraternidade, de ternura e carinho, então a vida será bela e valerá a pena ser vivida [...] (OSEGO, 1987-a)36
3.3.3.2- Os pacientes alojados no Albergue:
Para o albergue foram encaminhadas pessoas com baixa dose de contaminação que não tinham onde se alojar: aqueles que haviam perdido seus bens (móveis e imóveis).
A alimentação para estes abrigados, inicialmente, foi fornecida pela PM-GO e, posteriormente começou a ser feita nas dependências do Albergue, sendo custeada pela Legião Brasileira de Assistência-LBA, órgão federal então vinculado ao Ministério do Bem-estar Social.
O alojamento das vítimas no albergue cessou definitivamente em fevereiro de 1988, quando todas as vítimas já haviam sido encaminhadas para residir em um local definitivo (suas residências foram descontaminadas ou outra moradia foi providenciada pelo Estado para aqueles que tiveram suas casas demolidas).
3.3.4 - O Auxílio Internacional no auge do acidente (Outubro a Dezembro de 1987):
O Brasil, enquanto signatário da Convenção da Pronta Notificação Sobre a Ocorrência de Acidentes Nucleares (Convención Sobre la Pronta Notificación de Accidente Nucleares37), e também da Convenção Sobre Assistência em Caso de Acidente Nuclear ou Emergência Radiológica (Convención Sobre Asistencia en Caso de Accidente Nuclear o Emergencia Radiológica38), através da CNEN, notificou
36Neste relatório, é visível a emoção que envolveu a própria equipe social quando do arrolamento dos bens de uma das vítimas para que a mesma viesse a ser ressarcida de suas perdas materiais.
37A Convenção da pronta notificação sobre a ocorrência de acidentes nucleares, e também a Convenção Sobre Asssitencia em Caso de Acidente Nuclear ou Emergência Radiológica, são ambas de 1986. A primeira, como o próprio nome diz, regulamenta o imperativo de, quando um país sofrer ou causar um acidente nuclear, comunicar prontamente à Agência Internacional de Energia Atômica sobre sua ocorrência, local e a forma como ocorreu, para que os demais países possam ajudá-lo no intuito de reduzir as conseqüências da radiação.
38Esta Convenção complementa a Convenção de Pronta Notificação quando prevê a assistência
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a AIEA sobre a ocorrência do acidente radioativo de Goiânia ainda no dia 02 de outubro de 1987, solicitando a este Organismo o accionamento de assistência internacional.
Conforme consta do relatório oficial da CNEN, no auge do acidente houve troca de experiências, através de contato diretos ou por intermédio da AIEA, “com os governos da Argentina, França, Alemanha, União Soviética, e Estados Unidos.”. As Organizações internacionais disponibilizaram apoio técnico direto e “também a cessão ou empréstimo de equipamentos específicos da área de radio-proteção por parte da AIEA: Inglaterra, Hungria, Holanda, Japão, França, Alemanha Federal, e Israel”.(CNEN,1988).
È notório que o simples fato de estatuir “regras” internacionais não determina o efetivo exercício de tais normativas, mas permitiu mecanismos de resposta a crises. Assim, no tocante ao acidente radioativo de Goiânia, a assistência internacional deu-se em vários patamares, envio de equipamento e orientação, entre outros; mas o que prevaleceu foi o auxílio de técnicos especializados no tratamento médico das vítimas.
3.3.5 - A abordagem da mídia:
A divulgação do caso foi realizada paralelamente ao desenrolar do processo: na medida em que as autoridades e técnicos iam tomando conhecimento da situação, a mídia ia também explicitando as opiniões, por diversas vezes desencontradas, dos diferentes protagonistas, contribuindo para fazer crescer a insegurança e o medo, mas também a confiança na capacidade das autoridades de responder adequadamente ao acidente:
[...] os meios de comunicação não cessavam de anunciar a possibilidade de mortes entre os atingidos pelo Césio-137 e a possibilidade de que as dimensões do acidente fossem muito maiores do que as autoridades admitiam. (CHAVES, 1995: 57).
Os jornais divulgaram amplamente a situação, realizando a descrição do ocorrido em Goiânia e estabelecendo relação direta com acidentes radioativos, retomando o acidente de Chernobyl de 1986, como exemplo, e discutindo as suas
mútua internacional em casos de acidentes. (AIEA,1986).
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conseqüências no curto, médio e longo prazo:
Podemos afirmar que o acidente com o Césio-137 desencadeou uma série de imagens vinculadas às conseqüências de altas dosagens de radiação que foram resgatadas da memória social que estivera confrontada com outras ocorrências muito mais graves: Hiroshima. Chernobyl. Também colocou, num horizonte de possibilidades, o aumento desenfreado da ocorrência de câncer entre a população da cidade, instalando-se como um sentimento de ameaça a um presente opressivo e a um futuro incerto e inseguro.
(CHAVES, 1995: 29)
Nos relatos da mídia foi ficando clara a confusão técnica-política sobre a forma de agir e sobre a avaliação do nível de contaminação existente, através de diferentes declarações de técnicos e autoridades. “As inconsistências de dados presentes nas falas dos especialistas seriam resumidas na própria informação oficial da CNEN” aos meios de comunicação (Chaves, 1998:81). Era manifesta a incapacidade, por parte das várias instituições em evitar contradições:
Como podemos observar, para além das divergências entre campos distintos do conhecimento, havia uma discordância no interior do próprio grupo técnico, expressa entre a fala de Carlos Eduardo, publicada em 3 de outubro, e de Rosenthal, em 08 de outubro. Enquanto na primeira, a possibilidade de contaminação do lençol freático e dos cursos de água que cortam a cidade estava completamente descartada, “porque o Césio é um elemento muito pesado e que migra muito lentamente”, o pronunciamento de Rosenthal admitia uma possibilidade de contaminação das galerias pluviais, “visto que as chuvas poderiam ter levado o Césio para estas galerias” e, por extensão, para os rios que cortam a cidade. (CHAVES 1998: 90)
A insegurança da população cresceu a partir de informações veiculadas pelos noticiários locais e nacionais sobre os riscos e sobre a gravidade do acidente radioativo, um efeito intensificado pela proliferação de novos termos, desconhecidos dos não especialistas (contador geiger, dosimetria, radiação, radiodermites, entre outros) intensificavam ainda mais o medo.
(...) os meios de comunicação, embasados por opiniões técnicas, chamavam a atenção para os riscos a que estava submetida à população em geral, salientando, principalmente, os riscos à saúde, como a possibilidade de aumento de incidência de câncer. Dessa forma, a população goianiense via-se sob uma ameaça invisível, misteriosa, inexplicável e cujas conseqüências projetavam-se para
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um futuro incerto. (CHAVES,1998: 53).
O novo, aliado ao medo, tornou-se uma situação presente no dia-a-dia da população de Goiânia, nas suas mais diferentes e específicas manifestações.
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CAPÍTULO IV – RESPONSABILIDADE E ASSISTÊNCIA
O acidente radioativo de Goiânia poderia ter se tornado um momento de publicização e democratização da discussão acerca da política em relação ao nuclear, tanto no plano nacional como internacional. Em lugar dessa discussão, contudo, assistiu-se a uma fragmentação da abordagem ao problema, por setores heterogêneos, que acabariam por sua vez por confluir para discussões acerca da minimização ou resolução das conseqüências de uma política nuclear e das medidas previstas no plano internacional. Não se foi, por isso, muito além de discussões sobre o nível aceitável de risco e sobre as consequências imediatas do acidente de Goiânia.
Foram assim silenciadas ou postas à margem questões de considerável relevância, como a ausência de um posicionamento político específico em torno da questão nuclear - as diferentes esferas de governo preocupavam-se sobretudo em alijar responsabilidades pelo ocorrido -, e de uma política de prevenção dos riscos associados à utilização “pacífica” de elementos radioativos, reconhecendo os seus efeitos positivos e prejudiciais à saúde, à segurança das pessoas e ao ambiente.
O impacto ambiental do problema deveria ter levado, desde o primeiro instante, a constituir o que parecia, à partida, como um problema de âmbito local em problema com implicações mais amplas, justificando a mobilização de recursos e de entidades globais ligadas à vigilância e regulação dos usos pacíficos de tecnologias nucleares. No entanto, não foi isso que aconteceu. Esse aspecto foi considerado apenas em relação à assistência médica internacional, materializando-se no apoio técnico prestado ao Estado de Goiás pela comunidade internacional. Todavia, os aspectos globais da problemática não foram considerados no seu conjunto, ficando-se a assistência internacional pelo apoio sob forma de assistência médica, contenção da contaminação e controle social das zonas e populações afetadas. As implicações ambientais e psicossociais foram deixadas à margem, sem que assim se chegasse a considerar, de forma ampliada, os potenciais efeitos para além da localidade, associados, por exemplo, à mobilidade de pessoas e de objetos.
Assim, a cidade de Goiânia, num momento em que se impunha a construção de um conhecimento amplo e multidimensional sobre o acidente, as suas causas e os seus efeitos e o forjar de respostas adequadas a acidentes do mesmo tipo,
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acabaria por se “perder” na vertigem sensacionalista da abordagem mediática, focalizada nas consequências, mas não nas condições e nos processos que haviam estado na origem do acidente. Desta forma se fortaleceu a percepção de que as vítimas seriam, afinal, os culpados por aquilo que as havia atingido. A sua culpa estaria em boa parte associada à ignorância que levara os dois catadores a remover a cápsula dos escombros da clínica, mas também radicada na pobreza, na situação de classe e nas características raciais dos afetados. As condições de violência estrutural, desresponsabilização de entidades privadas e falta de capacidade de regulação e de resposta do Estado tendiam, assim, a desaparecer das narrativas sobre o acidente.
4.1 - A Assistência às Vítimas do Acidente Radioativo com o Césio-137.
Após a assistência inicial, era preciso instituir um órgão específico que se responsabilizasse pela gestão da assistência biopsicossocial às vítimas, pois neste sentido havia uma forte reivindicação da sociedade, ainda insegura. Foi assim criada, em 09 de dezembro de 1987, através da lei nº. 10.339, a Fundação Leide das Neves - FUNLEIDE, entidade pública, criada pelo governo do Estado de Goiás com o principal objetivo de realizar o acompanhamento, de forma permanente, dos efeitos do acidente. Tinha entre suas atribuições a assistência médico-social às vítimas diretas e indiretas do acidente, a promoção de estudos, programas, capacitação e intercâmbios em assuntos referentes ao acidente radioativo de Goiânia:
Art. 5o – Compete à Fundação:
I – prestar assistência médica e social às vítimas direta e indiretamente atingidas pelo Acidente Radioativo de Goiânia, durante o tempo que se fizer necessário; II – realizar estudos epidemiológicos sobre os efeitos do acidente; III – promover programas de vigilância ecológica (controle da radiação ambiental); IV – implantar programas de pesquisas em Física e Medicina Nucleares; V – capacitar, a curto, médio e longo prazos, pessoal técnico; VI – adequar pessoal próprio para atuar como referência em outros centros urbanos; VII – coordenar programas de divulgação para reverter a imagem negativa que se abate sobre Goiânia e Goiás; VIII – articular e coordenar todo e qualquer tipo de intercâmbio científico e de trabalho com instituições de ensino e de pesquisa, nacionais e internacionais; (GOIÁS,1987).
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A criação de uma Fundação para dar assistência aos radioacidentados sinalizou uma proposta de que esta viesse a ser uma instituição com autonomia, com possibilidades de angariar fundos e de realizar convênios, mas especialmente que permitiria um efetivo apoio aos radioacidentados.
A assistência proposta pela FUNLEIDE era inicialmente voltada para o atendimento médico, mas diante da situação de instabilidade psicossocial em que se encontravam as vítimas, passou também a incluir assistência social e acompanhamento psicológico.
Para realização do atendimento, foi criado um protocolo que tinha por base o nível de radiação a que teria sido exposto cada indivíduo, recorrendo a uma escala estabelecida pelo Instituto de Radioproteção e Dosimetria - IRD39. As vítimas passaram assim a ser classificadas em grupos, conforme a gravidade dos casos, sendo grupo 1 composto pelos casos de maior gravidade, os das pessoas atingidas diretamente pelo Césio-137.40, com exposição a mais de 20 rads. O grupo 2 incluía os que haviam tido contato moderado com o elemento radioativo. No grupo 3 encontravam-se as pessoas residentes nas proximidades dos locais de exposição,, ou amigos e parentes que haviam tido alguma forma de contato com vítimas. Finalmente, o grupo 4 incluía pessoas que haviam sido “menos expostas” à radiação.
Os grupos 1 e 2 foram cadastrado pela CNEN para acompanhamento sobre os efeitos do Césio-137. O cadastro do grupo 3 e 4 foi iniciativa da então FUNLEIDE.
A FUNLEIDE/SULEIDE, por seu lado, cadastrou pessoas que moravam em áreas vizinhas aos focos de contaminação e os profissionais que trabalharam no evento, classificando-os como integrantes do Grupo III. Essas pessoas não possuem dosimetria, i.e., comprovação de que foram expostas a doses significativas de radiação; ou apresentaram exposição a doses consideradas não prejudiciais à saúde. Os integrantes deste grupo não são reconhecidos como vítimas do acidente pela CNEN. (CURADO e FURTADO, 2007)
39 Instituto vinculado à CNEN.
40 Miranda afirma que, em relatório do Núcleo Médico da FUNLEIDE, se pode constatar que esta classificação por grupos segue critérios da Nuclear Regulatory Comission e Energy Research and Developmental Administration dos Estados Unidos, para doses consideradas elevadas de radiação. Nestes termos foram definidos quatro grupos: “1-Dose de corpo inteiro, medula óssea e gônadas-0,25 Gy (25 rad); 2-Dose superficial (pele) de extremidades – 6 Gy (600 rad); 3- Dose tireóide ou outros órgãos – 0,75 Gy (750 rad); 4- Atividade corporal – equivalente a ½ LIA(Limite Anual de Incorporação) para o Césio-137, respeitando-se as faixas etárias.” (1993:.53)
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Quadro 2 - Vítimas - classificação por grupos
Classificação
Nº. de Pacientes
Características
Dinâmica de atendimento
Grupo 1
54
Pacientes com mais de 20 rads. Com ou sem radiodermites
Consulta clínica médica mensal no primeiro ano e bimensal até o terceiro ano. Realização de exames laboratoriais de rotina. 41
Grupo 2
50
Sem radiodermites
Consulta clínica médica e exames de rotina quadrimensal.
Grupo 3
300
Sem radiodermites
Consulta anual com realização de exames de rotina.
Fonte: ANAIS, 1988.
Segundo Maria Paula Curado, em apresentação ao I Simpósio Internacional sobre o acidente radioativo com Césio-137 em Goiânia, em 1988, a atuação da instituição pautava-se precisamente pelo acompanhamento biológico:
“busca-se acompanhar cada paciente no sentido de detectar com precisão qualquer alteração hematológica, genética, neoplásica ou digestiva e oftalmológica, procurando-se, assim, diagnosticar precocemente todos os sintomas que surgirem no decorrer do acompanhamento clinico.”(ANAIS, 1988)
Para além de monitoramento clínico, foi realizada também a assistência psicossocial com trabalhos em grupos, buscando minimizar as angústias e sentimento de perda que ainda faziam parte do cotidiano das vítimas. O profissional de Serviço Social repassava mensalmente a cada família uma cesta básica de alimentos não perecíveis e, semanalmente, carne e verduras. Àqueles que tiveram suas casas demolidas foi providenciado o aluguel de um imóvel. Ao assistente Social cabia ainda a identificação das necessidades e encaminhamento às demais instituições públicas para resolução de problemas e, para isso, eram providenciados transportes de ida-volta para a FUNLEIDE às pessoas que fossem realizar as consultas agendadas.
Esta Fundação protagonizou a organização do atendimento às vítimas do Césio-137, que para o Estado se resumiam a 249 pessoas (grupo 1, 2 e 3). Apesar das fortes reclamações das vítimas no tocante ao atendimento, ao descaso, à ausência de tratamento digno e ao preconceito que tinham de enfrentar, todo este atendimento foi entendido por alguns críticos como mais uma manifestação de
41Sendo os mais comuns o Hemograma, o EAS e o Excretas.
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paternalismo e assistencialismo, negando ou ocultando histórias de perdas e de sofrimento e a responsabilidade estatal em relação ao acidente e às suas consequências.
As críticas ao atendimento “paternalista” realizado pela FUNLEIDE foram fundamentais para sua extinção em 11 de novembro de 1999 e por força dessa mesma lei, todas as suas atribuições passaram a pertencer à Secretaria da Saúde, na recém-criada SULEIDE, que se tornava responsável pela gestão da assistência aos radioacidentados.
A diferença fundamental entre estas instituições residia na perda de autonomia administrativa da segunda, que passou a estar incluída na estrutura da Secretaria de Estado da Saúde. O atendimento às vítimas do acidente passou, assim, a ser mais uma de entre muitas outras atribuições da Secretaria de Saúde. Passou-se assim a conotar o apoio às vítimas com a redução ao acompanhamento médico dos radioacidentados, ignorando outras formas assumidas pelas perdas e pelos efeitos sobre as populações atingidas. Por outro lado, deixava-se a impressão de que o Estado teria estabelecido de forma definitiva o número efetivo de vítimas do Césio-137, e que a estas estaria sendo prestada toda a assistência a que tinham direito.
4.2 - A questão da responsabilidade
Além da forma confusa como o acidente radioativo de Goiânia foi retratado pela mídia, grande ênfase foi dada à discussão acerca da determinação dos responsáveis pelo acidente radioativo42. Os proprietários da clínica? O físico responsável pelo aparelho de raio X? O Estado, através da CNEN, visto ser este o órgão responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos aparelhos de raios-X? Ou os catadores de sucata, que retiraram a peça dos escombros da clínica? Multiplicaram-se, assim, as discussões e debates sobre o assunto:
(...) antes mesmo de se instaurar o inquérito policial, os sucateiros que retiraram a peça do IGR já estavam sendo acusados de serem ladrões, o que transfigurava suas condições de vítimas para a de transgressores da ordem social. (...) (CHAVES, 1998:88).
42 “No Caso do Césio 137, acidente ocorrido em Goiânia, um dos temas mais explorados pela imprensa foi o discurso em torno das responsabilidades. Em 01 de outubro de 1987, esse assunto estava presente tanto na imprensa local quanto na nacional(...) (Costa, 2003:240).
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Foram diversas, senão mesmo divergentes, as interpretações sobre a retirada da cápsula dos escombros, descrita umas vezes como “furto”, outras como “achado”. Mas em qualquer das interpretações a culpa recaía sempre nas vítimas:
[...] dois rapazes, sem profissão definida, pretendendo extrair o chumbo que revestia o aparelho de teleterapia, [grifo] furtaram das ruínas das antigas instalações do IGR a parte que continha uma cápsula de aço inoxidável, em cujo interior se encontrava o cloreto de Césio-137. (Costa Neto e Helou, 1995:13)
Entretanto, outros documentos que relatam o caso apresentam a retirada da cápsula dos escombros como consequência do descaso dos proprietários da clínica, da ausência de fiscalização do Estado, do meio de sobrevivência utilizado pelos catadores, ressaltando sua ignorância e sua condição de vítimas.
A responsabilidade sobre o acidente não era assunto em pauta, não se discutia, naquele momento, as causas, a essência do problema que girava em torno do despreparo do Estado para lidar com material radioativo.
Os técnicos, refugiados na sua especialidade, recusavam-se a falar sobre a responsabilidade pelo acidente, sobre o projeto nuclear ou mesmo sobre o destino do lixo atômico. Só aceitavam conversa em torno das questões colocadas pelo acidente: descontaminação, medidas de segurança e retirada do lixo do centro da cidade (GABEIRA,1987:24).
Esta situação demonstrava a ausência de um debate aberto, comprometido e acessível ao conjunto da população, que ficava às margens do processo de discussão. Somente em 1995 o Ministério Público Federal, e o Ministério Público Estadual propuseram a instauração de ação civil pública com vistas a apurar quem seriam os responsáveis pelo acidente radioativo. Na inicial da ação, os catadores não foram citados como réus, mas foram apresentados outros responsáveis:
Destarte, com base no art. 37, § 6º da CF/88 e art. 14, §1º, da Lei 6.938/81, a inicial pleiteia a responsabilização civil: a) da UNIÃO FEDERAL, posto que titular do monopólio da exploração dos materiais nucleares e seus derivados; b) da CNEN, cujas atribuições relativas ao poder de polícia e controle dos materiais radioativos não foram preventivamente exercidas; c) do ESTADO DE GOIÁS, a quem competia a fiscalização das unidades hospitalares; d) do IPASGO, proprietário do terreno em que se situava o antigo edifício do IGR, por não haver promovido as medidas necessárias à vigilância do local, até a remoção dos equipamentos ali
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abandonados; e) dos demais Réus, médicos proprietários do IGR e físico supervisor da manipulação do material relativo, pela inobservância das regras afetas à respectiva licença de utilização do aparelho radiológico.(BRASIL, 2000:04)
O Estado se colocou como omisso diante dos “direitos das vítimas diretas e indiretas”, visto que ficou claro que a CNEN, órgão responsável pela fiscalização e controle das atividades nucleares, afirmou que o acidente teria ocorrido em virtude do seu “descontrole” sobre o aparelho radioativo, que deveria ter sido recolhido, após comunicação dos que eram por ele responsáveis.
A CNEN, em diversas entrevistas, se declarou alheia ao processo, assumindo o fato de ser a responsável pelo controle, mas de, efetivamente, não tê-lo realizado, pois não teria sido informada da paralisação das atividades do aparelho e somente poderia atuar após tal comunicação.
Ocorre que, apesar das normas que os proprietários da clínica e o físico responsável pelo equipamento deveriam seguir, a CNEN se mostrou incompetente para fiscalizar atividades envolvendo tecnologias nucleares, uma vez que o aparelho deixara de funcionar há três anos, e, mesmo sem ter recebido comunicação, deveria ter atuado na ausência de recebimento de relatórios daquela unidade.
Costa expressa com muita veemência o fato de que a CNEN declarara várias vezes a sua impossibilidade de
[...] promover a fiscalização física permanente sobre os equipamentos radioativos existentes no país. Para suprir essa deficiência, explica Almeida, há um rigoroso processo de credenciamento, mas a responsabilidade é delegada a um médico radiologista e a um físico. O controle passa a ser feito pelo correio. Os operadores desses equipamentos são obrigados em serviço, a carregar uma placa lacrada com filmes especiais que registram os níveis de radiação e, uma vez por mês, a placa é remetida ao Instituto de Radioproteção e Dosimetria no Rio de Janeiro, onde o filme é revelado e analisado. A qualquer anormalidade, o IRD pode promover uma investigação. (O Estado de São Paulo, apud COSTA, 2003:2444).
Entretanto, a CNEN declarou-se isenta de responsabilidade pelo acidente, atribuindo a culpa exclusivamente ao proprietário da Clínica e ao responsável técnico pelo aparelho.
A relevância desta discussão reside na forma como ela revela a inexistência de
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capacidade de intervenção por parte do órgão responsável pelo nuclear. Ou seja, percebe-se um despreparo técnico e político para lidar com situações daquela natureza.
Houve, posteriormente, uma redefinição das atribuições da CNEN. Esta instituição tinha, até meados de 1987, obrigação de fiscalização da instalação e do uso de aparelhos que possuíssem fonte radioativa. Entretanto, o decreto número 77.052/87, transferiu esta competência para o âmbito do Governo Estadual, mais especificamente para as Secretarias de Saúde dos Estados, que no Estado de Goiás era representada pela OSEGO. Assim, a CNEN efetuaria apenas o licenciamento através de visita técnica durante a instalação. Após este procedimento, a responsabilidade pelo controle e monitoramento passou a ser do órgão estadual responsável pela secretaria de saúde/vigilância sanitária.
A questão da responsabilidade, contudo, é mais complexa. Ela não se resume à responsabilidade civil pelos danos ou ao “ato falho” da instituição responsável pelo controlo e monitorização de equipamentos com fonte radioativa. Ela envolve também a reflexão sobre a responsabilidade pela ausência de atendimento de qualidade, pela não-garantia do acesso aos serviços de saúde e à informação, que deveriam ser prerrogativas de todo cidadão e não foram plenamente garantidos, visto que inúmeras outras pessoas contaminadas não chegaram sequer a ser identificadas:
[...] Era provável que as vitimas que manusearam o Césio-137 de fato já estivessem identificadas, examinadas e isoladas. Entretanto, [grifo] os acontecimentos e denúncias posteriores viriam demonstrar que aquelas que sofreram baixa radiação não estavam identificadas. (CHAVES, 1998:93)
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CAPÍTULO V - REJEITOS RADIOATIVOS: DO DESTINO PROVISÓRIO AO DEPÓSITO DEFINITIVO
Em Goiânia, o episódio da contaminação por Césio-137 trouxe a necessidade de identificar naquele local, todo e qualquer rejeito radioativo43 e colocá-lo em um local em que não fosse possível a contaminação.
O problema era encontrar um local adequado para depositar mais de 4 mil toneladas de lixo radioativo, pois os rejeitos radioativos no Brasil, até então, não tinham um destino definitivo. Os usuários de artefatos geradores de radioatividade davam aos seus “lixos” uma destinação própria, resguardada a competência da CNEN, responsável pelo monitoramento dos resíduos radioativos.
Existia, assim, no país uma multiplicidade de depósitos de lixo radioativo “provisórios”, provenientes de usinas nucleares; instalações que faziam uso de combustível nuclear, clínicas, centros de pesquisa e hospitais44 e, nesta altura, juntaram-se a estes os rejeitos do acidente radioativo com o Césio-137 produzidos em Goiânia.
O quantitativo de lixo radioativo gerado por este acidente excedia em muito o volume considerado normal pelos responsáveis pelo acondicionamento deste tipo de material, o que levou à ampliação dos problemas decorrentes da forma como se deveria lidar com os rejeitos radioativos, com as vítimas e com os possíveis impactos sobre a sociedade e o ambiente:
Esses rejeitos, provenientes principalmente da Central Nuclear de Angra, da Indústria de Beneficiamento de areias monazíticas, do acidente radiológico de Goiânia e do uso de radioisótopos em medicina, indústria e pesquisa, representam um volume de cerca de 15.400 m3. (CNEN, 2001).
43A CNEN considera rejeito radioativo “todo e qualquer material resultante de atividades humanas, que contenha radionuclídeos em quantidades superiores aos limites estabelecidos pela CNEN, cuja reutilização é imprópria ou não prevista “(CNEN, 2001).
44No que tange ao lixo radioativo inexistia, anteriormente ao acidente um depósito definitivo para os rejeitos nucleares produzidos normalmente pelas Usinas, Universidades e aparelhos radiológicos em desuso que deveriam retornar a central, sendo os rejeitos tratados de forma individualizada por cada agente causador.Somente em 2001 a lei 10.308 designará este tipo de depósito de “depósito Inicial”, determinando que toda e qualquer ação e reação decorrente deste depósito é responsabilidade do titular/proprietário do depósito.
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5.1 – A Operação Césio-137: a descontaminação e o acondicionamento dos rejeitos radioativos.
A seguir à descoberta do acidente radioativo, na região central da cidade, as primeiras providências para a localização dos focos de radioatividade e para a contenção da disseminação da contaminação consistiram no isolamento da área, utilizando a estrutura da PM-GO e do CRISA. A partir de então, funcionários da CNEN foram responsáveis pelo direcionamento dos trabalhos para “coleta e segregação” dos entulhos, onde inúmeros trabalhadores, nem sempre utilizando material de proteção, voluntários ou convocados, foram associados a esses trabalhos.
A classificação do lixo radioativo de Goiânia foi realizada da mesma forma que a CNEN efetuava a destinação dos rejeitos radioativos provenientes das Usinas, ou seja, passando pelo processo de coleta e segregação – a coleta compreende “a colocação dos rejeitos em recipientes adequados” e a segregação consiste na “separação física de cada tipo de rejeito no momento da coleta de modo a facilitar e permitir o tratamento posterior”. Além destes cuidados, foi utilizado o tempo útil para que o resíduo retornasse ao nível normal de radioatividade como um dos índices do teor de radioatividade e uma das formas de “catalogação” do lixo radioativo.
Foi assim realizada a remoção de entulhos, papéis, demolição de residências, de solo (que em alguns locais teve de ser removido devido ao alto grau de contaminação). Este material foi separado tanto por especificidade (tipo de lixo), quanto pelo nível de radioatividade (considerou-se o tempo em que a radioatividade presente no entulho viria a atingir um nível em que pudesse ser considerado dentro dos padrões de normalidade).
No tocante à radiação, foram contaminadas cerca de 46 residências. Algumas foram totalmente demolidas e transformadas em rejeitos radioativos, outras foram contempladas com o processo de descontaminação, que foi realizado através de remoção de piso e de revestimento e da tentativa de descontaminação de objetos móveis por procedimento químico ou abrasivo. A contaminação estava presente em partes como piso, parede, portas, roupas, mobílias, eletrodomésticos, objetos de uso pessoal e, na área externa às residências, em porções contaminadas de solo – tanto na área residencial como também em áreas públicas. Outra via foi a remoção de solo e sua recomposição. Foi efetuada ainda a descontaminação de locais públicos.
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Através do processo de descontaminação, residências, roupas, documentos, fotos, objetos com valor monetário ou sentimental, ou seja, a maioria dos bens pertencentes às vítimas do Césio-137 foram acondicionados e declarados lixos radioativos.
Após a localização dos focos de radiação, a região contaminada foi isolada para realização da operação: o lixo radioativo foi, quando possível, descontaminado; quando tal não era possível, o lixo foi classificado, embalado e deixado na região central da cidade. A quantidade de lixo aí depositada tornava visível a dimensão do acidente: mais de 5000 recipientes com lixo radioativo.
Ilustração 3 - Lixo radioativo sendo colocado nos tambores45
Os quadros a seguir demonstram o tipo e o volume de entulhos recolhidos na operação Césio-137 e explicita a relação entre o volume, nível de radioatividade e tempo para que os resíduos considerados radioativos retornem a uma situação em que deixam de ser perigosos:
45 Fonte: CNEN-CRCN-CO- Projeto Goiânia – Arquivos da SULEIDE.
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Quadro 3 - Volume de entulho por especificidade
Classe
Tipo de Entulho/ Resíduo radioativo
Tipos de embalagens utilizadas
% em volume total
1
Solo removido, entulho e pequenas peças metálicas.
Caixas metálicas e tambores, sem imobilização.
85%
2
Papel, plásticos e tecidos em geral (roupas, etc.)
Após o acondicionamento em fardos, foram colocados em contêineres marítimos. Uma parte destes entulhos foram também colocados em caixas metálicas e tambores de 200 lt.
11%
3
Orgânicos: carcaças de animais, frutos e madeira
Os animais contaminados que foram sacrificados foram acondicionados em tambores de 200 lt. Os demais rejeitos foram colocados em caixas e tambores.
4%
Fonte: GOIÁS, 1994.
Neste caso, 85% do volume do lixo radioativo referia-se ao solo removido das áreas contaminadas e também às peças metálicas provenientes de eletrodomésticos, utensílios de uso doméstico, etc; 11% a material plástico e a papel e os demais 4 % a árvores contaminadas e animais domésticos (galinhas e cachorros), que foram sacrificados e declarados resíduos radioativos.
O nível de radioatividade destes resíduos radioativos variava, tanto entre categorias - metal, papel, ou resíduos orgânicos – como dentro de cada recipiente.
Assim, a quantidade de lixo proveniente do acidente radioativo de Goiânia era de 1350 caixas metálicas e 4215 tambores, além de contêineres e embalagens de concreto utilizadas para maior contenção de radiação nos materiais mais contaminados. Todos estes resíduos foram sendo coletados, segregados e colocados no centro da cidade de Goiânia. (GOIÁS, 1994).
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Quadro 4 - Volume de entulho por nível de radioatividade
(Tempo para retorno à normalidade)
Grupo
Tempo para que o rejeito atinja normalidade
Volume
%
Nº. de Caixas metálicas utilizadas
Nº. de Tambores metálicos utilizados
Outros recipientes
1
Rejeitos com nível de radioatividade < ou = a 87 Bq/g
43.86
387
2696
10 Contêineres de Navios
2
< ou = a 90 anos
23.85
369
992
-
3
> que 90 anos e < ou = a 150 anos
15.99
289
311
-
4
> que 150 anos e < ou = a 300 anos
15.05
281
214
-
5
> que 300 anos
1.29
24
2
8 Embalagens de concreto
Restos da Fonte de Cs-137(isolada em uma matriz de cimento)
TOTAL
100.00
1350
4215
19
Fonte: GOIÁS,1994.
A visibilidade desse enorme volume de lixo radioativo contribuiu, como seria de esperar, para o agravamento do sentimento de insegurança entre a população da cidade.
Em outubro de 1987, o Conselho Estadual de Meio Ambiente, órgão deliberativo, proibiu que o lixo radioativo permanecesse na área urbana de Goiânia, levando as autoridades a iniciar, com caráter de urgência, o processo de identificação e escolha da área em que viria a ser localizado o depósito provisório. Neste percurso algumas áreas goianas foram identificadas como possíveis locais para a deposição de rejeitos radioativos46, mas em todas elas houve fortes protestos no intuito de que essa deposição não fosse concretizada.
46A primeira área selecionada distava 5 km da Vila Pedroso, na região urbana de Goiânia. A segunda área situava-se a mais de 20 km da capital (PEREIRA, 2005). Finalmente, foi considerada a possibilidade de instalá-lo nas imediações de Abadia de Goiás.
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Ilustração 4 - Lixo radioativo depositado no centro de Goiânia47
5.2 - Rejeitos radioativos: onde colocá-los?
Em 1987, deflagrou uma controvérsia de âmbito local e nacional em torno dos locais adequados ao depósito dos rejeitos radioativos.
Após a transferência dos rejeitos para o depósito provisório, foi estabelecida uma lista de locais onde seria possível a instalação definitiva dos rejeitos radioativos. Entretanto, com a revelação de mais de 20 áreas espalhadas48 por todo o Brasil, alguns Estados se manifestaram alegando que não poderiam arcar com os “custos” ambientais oriundos dos problemas do Estado de Goiás. A discussão em torno do que fazer com o lixo de Goiânia e com o lixo radioativo gerado pelos pacientes levados para o Rio passou, então, a objeto de intenso debate, transformando-se de questão técnica em questão política.
O Governador do Estado de Goiás, Henrique Santillo, no intuito de aliviar as tensões que cresciam em torno do problema, prometeu repetidamente aos goianos a retirada do lixo radioativo do interior do Estado, considerando as possibilidades de o enviar para outros Estados da Federação:
47 Fotografia pertencente aos arquivos da SULEIDE.
48Pereira (2005:53) salienta que entre as áreas mencionadas, 18 eram continentais e outras três se situavam na orla do Oceano atlântico.
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(O Governador) declarava, com ênfase, que não permitiria que o rejeito radioativo se localizasse no Estado; que estava consciente de que seria preciso o ajuntamento desse material contaminado da forma mais rápida possível, a partir daquele dia, num determinado ponto. Mas que precisaria ser o transitório do transitório, o provisório do provisório [...]. (COSTA, 2001:55)
Neste percurso de instalação do depósito provisório, e frente à possibilidade de virem a sediar o depósito permanente, vários Estados, pressionados por manifestações e protestos populares, regulamentaram as suas constituições49, proibindo a instalação de depósitos radioativos em seus territórios, desta forma se resguardando da possibilidade de serem elencados como possíveis depositários.
No âmbito Federal, o Presidente da República, à época José Sarney, que inicialmente teria apoiado o Governador de Goiás em suas declarações favoráveis à retirada dos rejeitos radioativos de Goiás, já não conseguia, diante das pressões de outros Estados da Federação Brasileira, manter essa posição: ”Logo se percebeu que esta posição do governo era uma posição muito mais isolada do que se poderia supor” (Costa, 2001:56)
Outros Estados (Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, entre outros), apontados como possíveis depositários do “lixo atômico”, iniciaram uma seqüência de protestos, entabulando pressão junto dos representantes políticos à escala nacional, situação que levou o Governo Federal a adotar uma postura diversa da assinalada anteriormente: De imediato, o Presidente enviou ao Congresso Nacional um projeto de lei50 que regulava que o lixo deveria ser responsabilidade de quem o produzisse.
O despreparo da CNEN para tratar do assunto deixou pendente de Norte a Sul a tarefa de sepultar os rejeitos. Foram aventados como locais São Fidélis-RJ,
49Cada Estado tem em sua jurisdição uma Constituição Estadual, mas sua legislação não pode ser contrária aos termos da Constituição Federal. Na época, esta não mencionava o tema, que seria da alçada de cada Estado.
50Projeto de lei número 239/87, que se tornou a lei 10.308/01. Segundo esta lei,,cada unidade da Federação, obedecendo ao principio da autonomia, deve dispor do seu próprio lixo radioativo. Pela primeira vez, os rejeitos são classificados em três modalidades: inicial, intermediário e final. O depósito inicial refere-se à responsabilidade de armazenamento do rejeito radioativo pelo próprio estabelecimento que o produz, até a sua transferência para o depósito Intermediário. O depósito intermediário e final seriam responsabilidades da CNEN, sendo que o intermediário poderia ser classificado como aquele em que os rejeitos seriam “recebidos, acondicionados, e armazenados”. O depósito final seria o local onde os rejeitos acondicionados e devidamente embalados seriam instalados definitivamente, mais precisamente, o destino final de todos os rejeitos provenientes dos depósitos inicial e intermediário. Esta lei introduz também a figura do depósito provisório, que não obedeceria a esta classificação, mas que, como o depósito provisório de Goiás, receberia todos os rejeitos radioativos provenientes de um Acidente Radioativo.
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Governador Valadares-MG, Canudos dos Dantas e Santana dos Matos-RN, Valença e Itainópolis-PI e, por fim, Serra do Cachimbo-PA, onde se encontra uma base da Aeronáutica.
O governo do Pará protestou, argumentando que aquele Estado não seria a lixeira do Brasil. O governo de Goiás fez nota oficial, demonstrando alívio por não ter que assumir o depósito de rejeitos em seu território. A explanação do princípio de que deveria ficar com o lixo quem o produz viria depois, dando forma a uma versão do que tem sido chamado de síndrome NIMBY (Not in my back yard). Foi em nome da defesa de seu “território” que os índios caiapós foram protestar, pintados para a guerra em frente ao Palácio do Planalto, para proteger a Serra do Cachimbo e seus rios. (ANDRADE,1988) 51.
Durante este processo, persistia em Goiás a discriminação, a ignorância associada à incerteza e ao medo, aliados ao despreparo de organismos governamentais. A população goianiense continuava a ser confrontada com as incertezas e dúvidas acerca da idoneidade das declarações científicas e da suspeita, sempre presente, de que os cientistas poderiam estar ocultando o verdadeiro impacto do acidente. Tudo isto, vivido pelos goianenses na época, continua presente no imaginário das pessoas que tiveram a experiência do acidente e das suas sequelas.
A dimensão e complexidade do acidente, com as suas implicações ambientais e sociais, alimentou ansiedades e expetativas relacionadas com a garantia de subsistência para a maior parte da população e com a sustentabilidade do seu modo de viver:
O que evidencia a tragédia de Goiânia é o fato de tratar-se de um acidente que envolve a questão da energia nuclear e seus efeitos sobre os seres humanos. No processo de domínio da tecnologia nuclear, deparamos com diversos subprodutos – o lixo, a bomba – que podem a qualquer momento, por falhas no sistema, irresponsabilidade ou por deliberação própria, reverterem-se em catástrofes de impacto semelhante ou ainda maior que o ocorrido em Goiânia. (MIRANDA, 1993:14)
51Alexandre Silva Andrade foi vítima de radiação quando trabalhava na Usina Nuclear Angra 1, em abril de 1986. Foi a primeira vítima de um “acidente” radioativo.
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5.3 - A qualificação da área para instalação do depósito provisório
A operação de qualificação de possíveis áreas que pudessem alojar provisoriamente o depósito de rejeitos radioativos obrigava a respeitar os quesitos previstos no Relatório de Impacto Ambiental - RIMA, documento proveniente de um amplo Estudo de Impacto Ambiental - EIA que avaliaria nível de risco e potencialidades positivas e negativas de empreendimentos sociais modificadores da natureza.
Neste caso, o RIMA foi realizado sob a responsabilidade da Empresa de Obras Públicas de Goiás - EMOP, e a área escolhida deveria possuir as seguintes características:
O terreno escolhido deveria ser público; Deveria localizar-se preferencialmente distante de núcleos populacionais, ou seja, em área rural, sem adensamentos; A distância aos pontos de origem dos rejeitos deveria ser a menor possível, de forma a minimizar os riscos inerentes ao transporte; A área em questão deveria estar razoavelmente bem atendida por infra-estrutura rodoviária, para facilitar os trabalhos de transporte, bem como o acesso ao depósito; Da mesma forma, o local deveria apresentar infra-estrutura existente e adequada ao suprimento e fornecimento de energia elétrica; O uso do solo no entorno da área escolhida não deveria ser caracterizado, em escala, por atividades agropecuárias; O local não deveria estar situado próximo a grandes mananciais ou outros corpos d´água de expressividade; Em termos topográficos, o terreno deveria ser razoavelmente elevado, eliminando-se assim quaisquer riscos relativos a inundações; A vegetação da área deveria se encontrar preferencialmente antropizada, ou seja, já apresentando um certo grau de degradação; O terreno não deveria apresentar afloramentos de água provenientes do lençol freático; A área efetiva do depósito deveria ser delimitada de tal forma que as taxas de exposição na cerca fossem inferiores ao limite para público estabelecido pela norma CNEN-NE-3.0152 (GOIÁS,1994:16-17)
De acordo com estes quesitos foi ventilada a idéia de depositar provisoriamente o lixo nas proximidades de Abadia de Goiás, povoado próximo a apenas 25 km de Goiânia, um local que atendia a boa parte das exigências acima mencionadas53:
52Esta norma estabelece o limite aceitável de doses ocupacionais de radiação.
53 O Anexo “A” apresenta a localização do Município de Abadia de Goiás em relação ao Estado de Goiás e ao Município de Goiânia.
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[...] Os representantes do Estado indicavam um terreno a alguns quilômetros da capital goiana. Tratava-se de uma cascalheira da Companhia de Pavimentação do Município de Goiânia (COMPAV) localizada numa área de seis alqueires da Prefeitura de Goiânia à margem da BR-060. Apesar de não atender necessariamente os requisitos anteriormente citados para tal a área ficaria designada para o depósito provisório, em comum acordo com os representantes ambientalistas das três esferas do poder, pelo Governo do Estado de Goiás e pela CNEN (PEREIRA, 2005:51).
Ao se tornar pública, no dia 18 de outubro de 1987, a escolha do local para o depósito provisório, multiplicaram-se os protestos da comunidade local, que se mostrou preocupada com a possível influência do depósito na desvalorização de seus bens (imóveis e móveis) e ainda com a possibilidade de desestímulo ao comércio e prejuízo para as atividades agropecuárias que desenvolviam, mas principalmente preocupações com a sua saúde e a redução de sua qualidade de vida.
Apesar das manifestações e à revelia dos protestos da população goiana “os representantes do Estado indicavam um terreno a alguns quilômetros da capital goiana” ou seja, o depósito seria, realmente, instalado “provisoriamente” nas imediações de Abadia de Goiás e a justificação apresentada pelo governo do Estado era o fato de ter que emergencialmente retirar o lixo radioativo da região central da cidade (Pereira, 2005: 51).
Como forma concreta de protesto pela ausência de consulta e pelo fato de discordarem do local definido para o depósito, cerca de 400 moradores do povoado de Abadia de Goiás e de regiões do entorno reuniram-se e bloquearam os portões que dariam acesso ao local onde ficaria o depósito provisório. Este movimento se fortaleceu e aglutinou cerca de 3000 pessoas que conseguiram paralisar a BR-060, rodovia federal que corta o Estado de Goiás, chegando a manter paradas 300 carretas carregadas.
O dilema referente à situação da colocação dos rejeitos radioativos do Césio 137 no Município de Abadia de Goiás passou por alguns entraves sociais. Primeiro pela manifestação na BR-060 em repúdio ao lixo radioativo, segundo pela fragilidade da confiança demonstrada pelos moradores e, terceiro, quanto aos custos ao qual a população local foi submetida ao receberem em suas terras o ‘lixo’ do Césio 137. (PEREIRA e SOUZA, 2006:15).
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O movimento de contestação organizou-se em três equipes:
Uma dormiu na entrada da fazenda escolhida para o depósito e outras duas foram bloquear a estrada- uma parou o tráfego no quilômetro três da BR-060 e outra equipe ficou no quilômetro 13. As vaias acompanhavam a chegada do vice-governador que tentava abrandar o povo. Declarava às pessoas estar ciente da desvalorização dos imóveis locais, mas que o problema precisava ser resolvido. O Governador mandou um emissário propor um prazo de 48 horas para negociar outro lugar para o lixo atômico [...]. (PEREIRA, 2005: 52)
Mesmo com tal proposta, a população local não se desmobilizou e manteve a vigília na frente dos portões do local onde seria o depósito provisório, a fim de impedir que aí se colocassem os rejeitos radioativos. Um grupo de manifestantes marchou até o centro da cidade de Goiânia em uma passeata publicizando seu protesto.
A resposta do Estado não tardou, sob a forma de um sistema de plantão policial na área, neutralizando e desmobilizando o sistema de vigilância da comunidade:
O acesso ao terreno esteve sob vigia, com sua entrada protegida por oitenta policiais. Grupos de dois ou três policiais patrulhavam um trecho de oito quilômetros da rodovia BR-060, a cada 300 metros, principal via para se chegar à área enquanto as viaturas percorriam a região. (PEREIRA, 2005:52)
Procurando criar um clima, pelo menos aparente, de negociação, o Estado propôs uma espécie de moratória da decisão, sugerindo que iria viabilizar um outro local para depositar o lixo. Após a população acatar a proposta e começar a desmobilizar-se, o que ocorreu foi algo de muito diferente:
A trégua de 48 horas pedida pelo governo aos moradores foi rompida quando transportaram doze tambores com materiais contaminados pelo Césio-137 para o terreno escolhido num domingo após as 22:00 horas, em dia anterior ao combinado. A proteção policial estava amparada por cerca de trezentos policiais que só permitiam a entrada de técnicos da CNEN ou pessoas do governo. A polícia detinha uma relação com os nomes de todos os moradores das proximidades e permitia a passagem delas após a identificação. (PEREIRA, 2005:52)
Assim, de uma forma impositiva, o depósito provisório foi finalmente instalado. A partir de então se passou a buscar alternativas para a instalação definitiva destes
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rejeitos, visto ser a garantia de provisoriedade da medida que permitia manter a paz social no local. Se a opção inicial de instalar o depósito nas proximidades de Goiânia não foi escolha da comunidade local, o fato de essa decisão ser apresentada como provisória contribuiu para amenizar e arrefecer os ânimos da população, apesar das esperanças desta de que o lixo radioativo viesse a ser removido.
A luta e mobilização dos residentes na comunidade
evidenciou (…) o reconhecimento do precário poder de influência deles apesar da mobilização, dos protestos e das tentativas de negociação. Persistiu o reforço de um distanciamento e a falta de credibilidade das instâncias técnicas e político-governamental (PEREIRA, 2005:62).
A provisoriedade perdurou por quase 10 anos, um período de tempo em que Abadia de Goiás se transformou de um mero povoado em Distrito e, em 1995, em município, com autonomia administrativa e financeira. A esta “promoção”, que passou a incluir a até então inexistente autonomia nos planos administrativo e financeiro, não terá sido alheio o propósito de “recompensar” as lideranças locais de Abadia de Goiás e de silenciar as denúncias que haviam estado na origem da mobilização da população. Mas a própria necessidade de instalação do depósito provisório naquela localidade trouxe consigo a necessidade de que houvesse, naquele momento um gestor municipal na área que intermediasse os interesses da comunidade local e os interesses políticos do Estado.54. A condição do município de Abadia de Goiás enquanto sede de um depósito de lixo nuclear proporcionou também uma compensação financeira sob a forma de recursos adicionais do Governo Federal, provenientes especificamente da CNEN.
[...] a verba destinada àquele município foi de fundamental importância para solucionar parcialmente os interesses por parte do público, como também os interesses políticos e econômicos, visando a um conceito de desenvolvimento e qualidade de vida. Este resultado final pode vir a desencadear novos significados para a relação de confiança mesclando os custos versus benefícios. (PEREIRA e SOUZA, 2006:16)
54 No Brasil, os povoados emancipados quando vão a categoria de município passam a receber verba orçamentária do governo federal, bem como administrar os próprios recursos como os provenientes do Imposto Predial Territorial Urbano - IPTU e o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza –ISSQN e outros.
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Todavia, a provisoriedade, se havia sido, num dado momento, um fator de tranquilização da população da localidade, acabaria por se tornar ela própria fonte de novas inquietações, com denúncias de corrosões nos tambores que acondicionavam lixo radioativo. Esta situação era notória para os visitantes ao depósito e suscitou o reacender da reivindicação da comunidade de Abadia e também de Goiânia de providências definitivas e de uma solução realmente segura para o lixo radioativo.
A exigência, presente nas resoluções do CONAMA e na Constituição Federal, de realização do EIA e a divulgação do RIMA através de audiência pública foram fatores importantes para esse reavivar da luta das populações locais, enquanto eventos que proporcionaram à comunidade conhecimento mais aprofundado sobre o acidente radioativo de Goiânia e principalmente uma maior possibilidade de participação nas decisões sobre como lidar com as suas consequências.
5.4 – O armazenamento e a estocagem do lixo radioativo no depósito provisório.
Após sua coleta, segregação e embalagem/acondicionamento, os rejeitos radioativos foram transferidos, em 322 viagens de caminhão (GOIÁS, 1994) da região central de Goiânia para a área escolhida em Abadia de Goiás.
Entretanto, para receber todo o lixo radioativo, mesmo que provisoriamente, o local necessitava de ser devidamente preparado, especialmente no respeitante às condições de segurança do terreno,
[...] através de corte e remoção de terras impróprias para suporte, e colocação do material adequado, seguidos de compactação e homogeneização. Após a compactação, foi realizada uma impermeabilização superficial do terreno, com asfalto, preparando-o, assim, para receber o concreto. Uma vez concretadas as plataformas, procedeu-se à sua dupla impermeabilização, com adesivo de base acrílica e cimento cristalizante, de maneira a se promover o fechamento das fissuras e porosidade do concreto, bloqueando-se assim à penetração de líquidos superficiais. (GOIÁS, 1994:38)
Após o “preparo” do local, os tambores e caixas foram colocados em prateleiras montadas em bases planas de concretos que se estruturaram em dois níveis, um sobre o outro, conforme figura abaixo:
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Ilustração 5 - Forma como foram dispostos os tambores e caixas metálicas55
Estes rejeitos foram expostos a céu aberto no que se convencionou chamar de área controlada, e, para que fossem mantidos em segurança, foi construído como porta de entrada um “ponto de controle”, onde se fazia a segurança local, monitorando a circulação, a entrada e saída de pessoas. Toda a área de 8,5 hectares era rodeada por uma cerca de arame de 2,1 metros de altura.
As embalagens foram dispostas nas prateleiras de forma que as áreas externas contivessem os rejeitos com menor radioatividade e as áreas internas os de maior índice de radioatividade. Assim os de classe menor quanto à radioatividade ficavam nas prateleiras laterais e os de classe maior nas do centro.
Durante o período que ficara provisório o perigo estava ‘visivelmente’ exposto para quem passava pela BR-060 e para quem morava no município de Abadia de Goiás. Os tambores e caixas metálicas amarelas e os containeres, dispostos em fileiras e amontoados acabava sendo visto por quem morava na cidade fazendo com que eles se sentissem constrangidos. (PEREIRA e SOUSA, 2006:10)
Entretanto não se estipulou por quanto tempo se daria à estocagem dos tambores no depósito provisório, que sob sol e chuva começaram a apresentar corrosão nas embalagens, necessitando de recondicionamento. Apesar da CNEN, responsável pela fiscalização, monitoramento e controle ambiental, alegar que tudo estava sob controle, houve inúmeras denúncias sobre o vazamento da
55Fonte:http://www.disaster-info.net/LIDERES/portugues/brasil%2006/Apresenta%E7%F5es/Iedaacidentegoiania01.pdf
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radioatividade.56
Frente à pressão da opinião pública, a CNEN, após 1991, iniciou, ainda no depósito provisório, a reembalagem do lixo radioativo:
O reencapsulamento foi realizado ainda no interior da área controlada do Depósito Provisório e ocorreu basicamente em função da necessidade de garantir a segurança no mesmo, uma vez que os tambores não teriam condições estruturais para o manuseio e transporte seguros, quando da transferência para o Depósito Definitivo. (GOIÁS, 1994:58).
Novamente se colocava em pauta a instalação do depósito definitivo de rejeitos radioativos, que nesta altura se transformara em questão de segurança para o Estado de Goiás, mas especialmente para a população mais próxima, a população residente em Abadia de Goiás e também em Goiânia.
As negociações políticas realizadas entre as lideranças do município e o Governo do Estado de Goiás e as alterações no cotidiano dos moradores de Abadia já haviam se estabelecido. Já não havia justificação para impor barreiras à efetivação do depósito definitivo.
A possibilidade de o depósito ser mantido indefinidamente como ‘provisório’ e jamais ser providenciada uma solução para o mesmo causava um desconforto entre os moradores. Uma das causas que gerava esta desconfiança se devia ao tempo, em torno de dez anos, que se passou desde que se colocaram os primeiros recipientes com os rejeitos radioativos naquela área até a decisão dos governantes em construir uma obra definitiva. (PEREIRA e SOUSA, 2006:10)
A preocupação da população com o risco da contaminação por radioatividade fazia com que a efetivação do depósito definitivo com instalações mais adequadas, seguras e conforme normas técnicas internacionais, significasse uma demonstração da intenção das autoridades em agir no sentido da minimização dos riscos a que a população estaria exposta. O fato de a comunidade de Abadia de Goiás não ter conseguido impedir a instalação do depósito provisório poderá ter suscitado na comunidade descrédito em relação aos efeitos de sua participação política e, especialmente, em relação às lideranças políticas e aos responsáveis
56Em 1991, eram comuns excursões de universitários ao depósito provisório. Em uma excursão de universitários do Curso de Serviço Social, da qual participei, pelo depósito provisório foi possível verificar, a olho nu, que os tambores estavam desgastados.
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governamentais, gerando desmobilização e um sentimento de resignação. Foram estas as condições em que se iniciaram os procedimentos técnicos necessários para a instalação do depósito, o EIA-RIMA e as audiências públicas.
5.5 - O EIA RIMA e a sua importância para a escolha do depósito
A deposição do lixo radioativo no local escolhido para sediar o depósito provisório obrigava à prévia realização do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e do respectivo Relatório de Impacto Ambiental - EIA-RIMA, em cumprimento do direito inscrito na Constituição Federal, em seu artigo 225.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (BRASIL, 1988)
A nova Carta magna veio caracterizar em novos termos o meio ambiente, enquanto patrimônio coletivo. No sentido da efetivação da defesa e preservação do meio ambiente para benefício das gerações presentes e futuras, os constituintes, pressionados pelos movimentos ambientalistas e por concepções conservacionistas, acrescentaram no inciso IV deste mesmo artigo a obrigatoriedade de realização do Estudo Prévio de Impacto Ambiental sempre que se fosse realizar atividade que pudesse ocasionar direta ou indiretamente algum tipo de dano ao meio ambiente, e por extensão prejuízo à comunidade:
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; (BRASIL, 1988)
A Constituição de 1988 deu à população brasileira a garantia legal de que o Estado defenderia o ambiente, enquanto patrimônio comum. Trouxe a necessidade de que toda pessoa ou entidade pretendendo realizar alguma intervenção modificadora que acarrete possível degradação da natureza, tenha que obrigatoriamente ter uma licença ambiental, que deverá ser requerida junto ao órgão público gestor do meio ambiente, a qual exige como requisito a realização do estudo prévio do impacto ambiental. Este licenciamento passou a ser exigido para cada
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obra a ser executada. (BRASIL, 1988)
Este órgão público gestor deverá, com uma equipe multidisciplinar própria ou por si contratada, mas que seja independente do projeto em questão, realizar o EIA com o conseqüente RIMA, com vistas a demonstrar os prós e os contras da intervenção e avaliar a viabilidade da realização do projeto.
O EIA deve privilegiar o estudo do ponto de vista técnico, observando as normas legais em vigor. O RIMA deve conter de forma objetiva e simples as conclusões do EIA, possibilitando a qualquer cidadão compreender as possíveis alterações e conseqüências que poderão acontecer no meio ambiente.
Após o término do EIA-RIMA deve-se torná-lo público, através de audiência pública57, onde todas as partes interessadas possam conhecer as modificações relativas à obra e desta forma, debater, discutir, aprovar, ou interpor recurso à realização da obra ou atividade.
Desta forma, para a instalação do depósito provisório, era obrigatório que o Estado realizasse o EIA-RIMA, que se tornou uma oportunidade única de participação nas questões concernentes à área, tornando-se também uma forma de o Estado começar a dar satisfação às exigências da comunidade. .
A empresa que realizou o EIA-RIMA teve como contratante o Estado, responsável pela escolha da área onde seria instalado o depósito. Esta situação, por si só, poderia tornar duvidoso e questionável o processo de publicização dos estudos realizados pela empresa contratada, mas a questão não chegou a ser levantada.
A obrigatoriedade de realização do EIA-RIMA teve o grande mérito de propiciar a oportunidade de acesso de entidades da sociedade civil e de órgãos públicos fiscalizadores, entre outros, a informações relativas a qualquer obra modificadora do ambiente, podendo ser proposta alteração e até paralisação da obra que não estivesse cumprindo os requisitos legais.
Enfim, o Estudo Prévio de Impacto Ambiental é o estudo que precede a execução de qualquer projeto, público ou privado, que possa implicar em significativa degradação do ambiente, para que se
57No tocante ao EIA, a Audiência Pública pode ser realizada pelo Órgão Ambiental Federal, Estadual, ou Municipal e relaciona-se com a democratização das ações que serão realizadas e com a efetivação da oportunização da participação da comunidade na definição das atividades que poderão causar alteração em seu “modus vivendi”. Pode ser realizada por reivindicação de entidades civis, Ministério Público, ou por um grupo de pelo menos 50 cidadãos.
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avaliem suas dimensões e interferências nos atributos de qualquer dos elementos que compõem o meio ambiente natural, cuida-se, pois, de um meio de atuação preventiva, que tem por escopo evitar as conseqüências nocivas ao ambiente, ou ao menos minimizá-las.(CARDOSO et al., 2003:25)
Nesta perspectiva, o RIMA do Depósito Radioativo e, mais especificamente, a audiência pública que o divulgou, propiciou não só a discussão do problema, mas também um meio de tornar acessível à população informação mais precisa sobre o processo. A audiência pública suscitou debates, abriu um espaço para o esclarecimento de dúvidas e permitiu que os “atingidos” dispusessem de um fórum para expressar as suas posições sobre o tema.
Apesar das audiências públicas constituírem um espaço de participação da população no debate e decisão coletiva, podem também, pela forma como são organizadas e conduzidas, servir para afirmar o primado dos saberes técnicos e mobilizar a autoridade destes para persuadir a população a aceitar as propostas da entidade proponente, neste caso o Estado.
5.6 - O depósito provisório que se transformou em definitivo
Em 3 de junho de 1997, mais de 9 anos após o acidente radioativo e cerca de 6 anos após o início das denúncias sobre a corrosão nos tambores depositados em Abadia, finalmente deu-se a inauguração do depósito definitivo, ou melhor, a transformação do depósito provisório em definitivo, com a divulgação da existência de 6.000 toneladas de lixo radioativo58.
Todo o lixo retirado das escavações permanece em um depósito - antes temporário e agora permanente – na cidade de Abadia, a pouco mais de 20 quilômetros de Goiânia, sendo uma fonte de preocupação para os moradores da região. (MIRANDA,1993:13)
A configuração do novo depósito apontava para a idéia de retratar a inexistência de risco sócio-ambiental, demonstrando ser aquele um lugar onde seres humanos, fauna e flora conviviam harmoniosamente. Segundo Pereira e Sousa (2006:10): “(...) a forração gramínea colocada na parte superior e exterior da caixa de concreto que acondiciona o material radioativo deram ao depósito um aspecto
58O jornalista Lauro Veiga Filho informa a inauguração do depósito definitivo em 3 de junho de 1997, no jornal Folha de São Paulo.
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‘menos aterrorizador’”. Quem hoje visita o depósito tem a impressão de um local calmo e seguro: “O aspecto estético do depósito concluído forneceu uma sensação de segurança maior, com uma melhor aceitação do risco pelos moradores” (Pereira e Sousa, 2006:10).
A instalação do depósito definitivo já não encontrou a mesma resistência que foi manifestada inicialmente quando da implantação do depósito provisório. Não é possível determinar se essa redução da resistência se deveu à aceitação, pela população, da ideia de que essa medida traria, finalmente, segurança e tranqüilidade, ou se simplesmente ela deixou de acreditar no seu potencial de mobilização. O fato é que os relatórios oficiais apresentam uma comunidade mais receptiva e tranqüila frente à instalação do depósito definitivo: “(...) E, passado o período emergencial verificou-se uma postura de reconhecimento e conformismo da população quanto à inevitabilidade da permanência dos rejeitos radioativos em Abadia de Goiás”. (GOIÁS apud PEREIRA, 2004:63).
5.6.1 - A estruturação do depósito definitivo: a “naturalização” do lixo radioativo.
A passagem do depósito provisório a definitivo não trouxe grandes controvérsias, mas confirmou o sentimento de descrença nas autoridades, que, na época da instalação provisória dos rejeitos, afirmaram que o depósito seria temporário.
O depósito provisório situava-se a 400 metros das instalações daquele que seria o depósito definitivo. A diferença entre a instalação provisória e a instalação permanente dos rejeitos fundamentou-se em um redimensionamento da área provisória, incluindo aumento da área, melhoria das instalações físicas, e principalmente acondicionamento e estocagem adequada, conforme as normas técnicas estabelecidas, dos rejeitos radioativos.
Em 1995, o Governo do Estado de Goiás criou, através da Lei n° 12.789/95, o Parque Estadual de Abadia de Goiás, Parque Telma Ortegal, em homenagem à primeira prefeita da cidade de Abadia de Goiás. Passou a ser uma área de preservação ambiental, na qual estavam inseridos o depósito provisório e o futuro depósito permanente de rejeitos radioativos. Nessa lei, pode ler-se:
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Art. 1º - Fica criado o Parque Estadual de Abadia de Goiás, situado no Distrito de Abadia de Goiás, Município de Goiânia, constituído de gleba da terra de aproximadamente 165.96,29 (cento e sessenta e cinco hectares, noventa e seis ares e vinte e nove centiares), do entorno do depósito dos rejeitos Radioativos oriundos do Acidente Radiológico de Goiânia com o Césio 137, incluídas as respectivas benfeitorias. Art. 2º - O Parque Estadual de Abadia de Goiás, destina-se a atender as normas de preservação do meio ambiente do entorno do depósito, recomendadas pelo IBAMA, CNEN e CEMAM, ficando desde já, sujeito ao regime especial previsto na Lei de Política Florestal de nº 12.596, de 14 de março de 1995 e Resoluçäo CEMAM nº. 01/94. (GOIÁS, 2006)
O depósito permanente, localizado a 23 km de Goiânia e a 1 km de Abadia de Goiás, foi inaugurado em 5 de junho de 1997, juntamente com o Centro Regional de Ciências Nucleares do Centro Oeste, unidade da CNEN.
5.6.1.1 - Da estrutura do depósito definitivo/permanente:
A preparação para a guarda do material radioativo no depósito permanente iniciou-se ainda no depósito provisório, através de um processo de recondicionamento, mas fundamentalmente envolveu um preparo diferenciado do terreno, com obras específicas, conforme as normas internacionais, para recebimento e permanência dos rejeitos.
A estrutura do depósito passou a ser configurada em duas partes: uma contendo rejeitos com baixa radioatividade, denominada de Container de Grande Porte (CGP), onde foi colocado 40% do lixo que poderia ser colocado em aterros sanitários comuns. O CGP se materializou em uma caixa de concreto, de padrão normal, onde foi colocado o lixo, coberta com solo e com grama, com mecanismos de monitoramento da água subterrânea.
A outra parte do lixo, com radioatividade mais elevada, e que correspondia a 60% do volume total, foi encaminhada para o depósito número 2, o depósito definitivo, com uma estrutura mais complexa. Neste local foi construído um recipiente de concreto similar a uma caixa, onde os rejeitos foram agrupados, deixando os de mais alta radioatividade no centro e os de mais baixa radioatividade nas partes laterais, aproveitando a blindagem das embalagens como segurança.
Após a colocação destes rejeitos no recipiente, os espaços vazios foram ocupados com solução de concreto e, no plano superior, no que se convencionou
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denominar de capa, a parte externa dos rejeitos, foi criado um mecanismo de dreno da água da chuva, para que a mesma não chegasse ao conteúdo ali depositado, ou melhor, a capa foi “constituída de uma camada sucessiva de drenagem”, e acima dela foi plantada grama:
O projeto considera um depósito de sub-superfície, sob a forma semelhante a um monolítico, sendo que, após a deposição dos embalados, todos os espaços vazios remanescentes serão preenchidos com material apropriado. (GOIÁS, 1994: 70).
Ilustração 6 - Os dois depósitos de Rejeitos Radioativos em sub-superfície59
A nova estruturação do depósito teve a clara intenção de responder a todas as alegações de que o lixo radioativo não seria parte integrante da natureza, ou que constituiria uma ameaça à segurança das pessoas. À afirmação simbólica dessas posições não foi alheio o fato de a inauguração do depósito ocorrer no Dia Nacional do Meio Ambiente.
Apesar dos esforços de “limpeza” da imagem do local, e do empenho em reduzir a visibilidade dos problemas associados ao lixo radioativo, não foi possível às autoridades eliminar a impressão de que o local não é seguro. O espaço em que está instalado o depósito é um vasto espaço verde, mas sem pessoas, com apertada
59Fotografias retiradas pela Mestranda, em dezembro de 2005, no CRCN-CO.
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vigilância na entrada e sujeito a monitoramento permanente. Aquela não é uma “natureza” qualquer ou uma área “protegida” ou “preservada” como qualquer outra. A aparência “verde” oculta uma ameaça potencial ao ambiente e á saúde que não pode ser eliminada, mas tão só vigiada.
5.6.1.2 - Da unidade responsável pelo monitoramento e fiscalização do depósito
O monitoramento e fiscalização do depósito são realizados por duas entidades distintas, a administração do Parque e o CRCN-CO. O CRCN-CO, enquanto unidade da CNEN, é o responsável pelo monitoramento e fiscalização da área relativa ao depósito permanente. Contudo, as funções desta unidade extravasam as questões relativas ao lixo nuclear, e incluem a realização de pesquisas. Para esse efeito, o Centro conta, além dos dois depósitos, com um Prédio de Segurança Física, um Prédio de Manutenção, um Centro de Estudos e Formação em Radioecologia, Laboratórios de Radioecologia, e de Monitoração Individual e uma Biblioteca, entre outros equipamentos.
A responsabilidade por administrar o parque em toda a sua extensão cabe ao Estado de Goiás, por meio do seu Órgão gestor do meio ambiente, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos. As instalações físicas contam com segurança garantida ostensivamente pela Polícia Militar do Estado de Goiás.
Enfim, pode-se afirmar que na América Latina, este é o único depósito deste porte com as características mencionadas. Ademais é o único depósito no Brasil com destinação final, ou seja, de caráter permanente. Os depósitos iniciais se agrupam em várias ordens e em enormes quantidades, dada a obrigatoriedade de sua existência:
“Os depósitos iniciais são os mais numerosos, pois sua presença é obrigatória em todas as instalações produtoras de resíduos radioativo ou nuclear, desde os institutos de pesquisa, clínicas e hospitais, até às indústrias e usinas.” (VASCONCELOS, 2001)
Entretanto, são os depósitos intermediários que têm se tornado um problema sério e podem vir a se configurar como um problema não só técnico, mas fundamentalmente político, visto que alguns desses depósitos têm vindo a ser
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utilizados, de fato, como permanentes:
A CNEN tem ainda três depósitos intermediários, que estão no campus da USP, no Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear, que fica no campus da UFMG, em Belo Horizonte, e no Instituto de Engenharia Nuclear(IEN), na UFRJ. Os locais recebem o material recolhido das instituições que geram lixo radioativo, exceto [grifo] os gerados nas instalações de grande porte, que têm depósitos próprios para a guarda dos rejeitos, até que estes sejam recolhidos para deposição definitiva. (VASCONCELOS, 2001)
Entre os rejeitos abrangidos por esta última condição estão os provenientes das Usinas localizadas em Angra, no Estado do Rio de Janeiro. Os rejeitos são ali mesmo depositados e, apesar da lei denominar de depósito transitório os ali existente, eles estão se transformando em permanentes, dado o tempo de permanência dos rejeitos no local, sem previsão de transferência para depósitos definitivos.
A resistência por parte de municípios e de Estados em aceitar a localização de um depósito definitivo tem levado a que os responsáveis políticos adiem a decisão relativa ao melhor acondicionamento dos rejeitos radioativos, correndo o risco de se repetir algo que já aconteceu: a tentativa de fugir aos confrontos políticos e a posicionamento transparente sobre um tema tão controverso e com tantas implicações como este levou a que Goiânia recebesse uma alternativa provisória, como os problemas de segurança a ela associados, nomeadamente a corrosão dos tambores que ficaram a céu aberto no depósito provisório.
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CAPITULO VI – AS CONSEQUÊNCIAS DO ACIDENTE RADIOATIVO COM CÉSIO-137 E A SITUAÇÃO ATUAL
6.1 - Da Associação das Vítimas do Césio-137: constituição e trajetória
As vítimas do acidente com o Césio-137 tiveram sua primeira forma de representação consolidada em 1988, através da criação da Associação das Vítimas do Césio-137 - AV-Césio -137.
As pessoas associadas eram inicialmente 118, sendo um de seus objetivos, segundo Garcia e Miguel (1993). “a reparação imediata dos prejuízos físicos, morais, materiais e econômicos, ou financeiros, causados aos seus afetados e conhecidos e respectivas famílias, diretas ou indiretamente60(...)”
No ato da criação da Associação, através de seu estatuto, ficou estipulada a contribuição dos associados. Inicialmente, a AV-Césio-137 funcionou em uma sala alugada na residência de uma das vítimas na Rua 57, em uma escola de aprendizagem para adolescentes. A passagem por períodos de dificuldades e de desânimo levou os associados a deixar de contribuir com a taxa mensal estipulada. A Associação passou a ter de contar com a solidariedade de algumas das vítimas para manter o seu funcionamento. A situação complicou-se quando, em 1991 a entidade cerrou suas portas, ficando inativa por mais de dois anos.
Quando retomou o seu funcionamento, os próprios componentes da diretoria executiva da Associação61 se responsabilizaram por encontrar um espaço físico, cedendo suas casas para sediar a entidade.
Apesar dessas tentativas, porém, não foi possível manter uma estrutura física de apoio à Associação. Em meados de 2006, parte de seu patrimônio (documentos, relatórios, entre outros) era conservada na residência do Presidente, que carregava boa parte da documentação no porta-malas de seu carro, e a outra parte era guardada na residência de uma das componentes da diretoria executiva. Esta situação criou dificuldades sérias ao controlo da atividade da associação e dos seus
60 Art. 3º, inciso 1º, do primeiro Estatuto da Associação das Vítimas do Césio-137 aprovado pelo grupo associado.
61 Conforme artigo 6º do Estatuto da Associação das Vítimas do Césio-137, a diretoria executiva da AV-Césio era composta por Presidente, Vice-presidente, Secretário, Tesoureiro e 2º tesoureiro.
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documentos por parte da comunidade, para além de dificultar, por ausência de uma sede permanente, os contatos entre os associados.
Ao longo dos últimos 20 anos, com exceção do período em que esteve inativa, e apesar do número crescente de adesões à Associação, as direções desta, com mandatos de dois anos, tiveram cinco presidentes, o último dos quais tem sido reconduzido no cargo desde 200362.
Em 2007, já ultrapassava 1.150 o número de pessoas associadas. Contudo, apesar de uma história coletiva de lutas e de reivindicações, a associação continuava a enfrentar grandes dificuldades de mobilização, e continuava por realizar o objectivo de um monitoramento de saúde a todos os grupos afetados ou potencialmente afetados:
(...) Odesson reclamou a necessidade de que seja feita uma pesquisa sobre os efeitos do Césio-137 nas vítimas, e nos vizinhos do local do acidente. “Até hoje não temos nada sobre isso”, Frisou. (MARCOS E ASSUNÇÃO, 2007)
Apesar dessas dificuldades, o grupo que vem assumindo a direção da Associação tem revelado grande capacidade de iniciativa e de ampliação das alianças e plataformas em que a Associação está envolvida, tanto no plano nacional como no plano global, com participação em redes sociais como a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e no Fórum Social Mundial.
O último sucesso da Associação extrapolou o âmbito da luta específica que empreende, pois conseguiu aceder à condição de entidade participante do Conselho Estadual de Saúde - CES, e foi a primeira entidade não-governamental representando os usuários do Sistema Único de Saúde a chegar na sua Presidência, com o consequente reforço de sua posição perante o Estado no âmbito da discussão da Política Pública de Saúde.
Durante os eventos que marcaram os 20 anos da ocorrência do acidente com o Césio-137, o representante do Ministério da Saúde anunciaria o lançamento de projetos voltados para as vítimas do Césio-137. Esses projetos, contudo, têm sido elaborados sem a participação efetiva dos radioacidentados na operacionalização das ações que lhes são destinadas.
62 A presidência da entidade foi assegurada, sucessivamente, pela Sra. Jadir, Sr. Odesson, Sra. Terezinha, Sra. Sueli e novamente o Sr. Odesson, com reconduções desde 2003.
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O projeto do Governo Federal inclui a construção de um Centro de Referência Internacional voltado à pesquisa, ao ensino e à preservação da memória do acidente. Não é claro se esse Centro virá a assegurar efetivamente o atendimento, a orientação e pesquisas, ou se será apenas mais um elemento de uma estratégia de “tranquilização” da opinião pública e de “normalização” dos problemas ligados a exposições a radiações e ao encaminhamento dos resíduos radioativos, insistindo na segurança das até agora encontradas.
Neste processo, é reafirmada a hierarquia dos saberes entre os que, em nome do seu conhecimento técnico-científico, avançam planos e soluções que passam ao lado das populações que por eles vão ser afetadas, e que vivem com o passivo da falta de resposta adequada aos problemas de controlo e de disposição de resíduos radioativos. Não parece haver um esforço real de ter em conta as necessidades e preocupações da população local, ou de incorporá-la no debate sobre os problemas e possíveis respostas a eles, ou sobre as implicações das decisões já tomadas, especialmente no respeitante a medidas de saúde pública e de monitoramento do estado de saúde da população: “(...)As autoridades de saúde deveriam, antes de tudo, expor a questão e ouvir a opinião das vítimas. Afinal, somos os principais sujeitos da radiação(...)(SILVA 2007).”
Note-se, a este propósito, que um Memorial do acidente radiológico de Goiânia foi projetado em 1993 por engenheiros da CNEN, sendo as condições de execução da obra estabelecidas num convênio entre Estado e Município, que até hoje não saiu do papel. Segundo esse convénio, deveria ser edificado um prédio de 444 metros no lote onde foi aberta a cápsula do Césio-137. Aí seria conservado o acervo em posse da SULEIDE. O Governo do Estado, contudo, alegaria não ser proprietário da área, e por isso não poderia autorizar sua execução. Contrariando esta posição, porém, em maio de 2006 a área seria, enfim, doada à Av-Césio-137 pelo Governo do Estado.
É importante salientar que a maior parte do acervo histórico que existe sobre o acidente radioativo de Goiânia está depositado na SULEIDE, ainda que aí não existam condições adequadas à sua conservação, manutenção e organização: “Milhares de fotos, filmes, slides, documentos em papel, artigos científicos e prontuários de pacientes feitos a época estão dispostos em prateleiras, alguns em caixas de plásticos e de papelão, outros soltos” (Borges, 2007) .
Este acervo é de grande importância, pois inclui prontuários de cada vítima
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(grupo 1 e 2 , especialmente), relatórios de Assistentes Sociais, de Médicos, de Psicólogos, documentos da extinta Fundação Leide das Neves, e uma grande variedade de fotos, artigos de jornais, revistas e artigos e trabalhos científicos em geral, abordando, sob diferentes perspectivas o acidente radioativo de Goiânia. È através desses documentos que, por exemplo, se torna possível verificar que, em relação ao grupo 1 e ao grupo 2, houve, durante os primeiros anos, efetiva assistência estatal, mas que esta foi diminuindo ao longo desses anos. Trata-se, pois, de um acervo fundamental para que aqueles que foram afetados pelo acidente possam afirmar-se como cidadãos de pleno direito, exigindo a reposição ou continuação de uma assistência que o estado deixou, de fato, de prestar passados os primeiros momentos de exposição direta à radioatividade. Por outras palavras, a capacidade de documentar o modo como o acidente afetou os diferentes cidadãos nele envolvidos e os danos biológicos por ele causados é um recurso crucial à reivindicação de direitos por parte desses cidadãos. Numa situação diferente, mas que apresenta, ainda que numa escala mais ampla, afinidades com o caso de Goiânia – o das vítimas do acidente nuclear de Chernobyl -, Adriana Petryna (2002) usou a expressão “cidadania biológica” para descrever o modo como os danos biológicos podem tornar-se um importante recurso para reivindicar direitos efetivos de cidadania.
6.2 - A Associação dos Militares Vítimas do Acidente com o Césio-137: constituição e trajetória:
A Constituição da Associação dos Militares Vítimas do acidente com o Césio 137- AMVC -137 deu-se em 2004. Essa associação tinha na sua origem uma concepção que podemos designar de corporativista, ligada às reivindicações de um setor de atividade específico, mas no decorrer do seu processo de luta se inseriu no contexto de lutas e reivindicações mais gerais. Nasceu com o objetivo de lutar pela efetivação dos direitos sociais das vítimas militares do acidente com o Césio-137, e a sua influência tornou-se muito ampla devido ao seu combate à discriminação e ao preconceito em relação aos contaminados no acidente.
O fato é que as consequências do acidente com o Césio-137 não se limitaram às pessoas que manusearam a peça radioativa. Abrangeram também pessoas que tinham contato direto com os que haviam sido expostos à radioatividade (familiares,
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amigos e conhecidos) e também outros indivíduos que tiveram, nomeadamente através de sua atividade profissional, um envolvimento direto no caso, entre eles os profissionais da saúde, jornalistas, funcionários do CRISA que trabalharam na demolição e retirada do lixo radioativo, e também policiais militares e bombeiros, atuantes na retirada dos contaminados, na transferência destes para as barracas no Estádio Olímpico e também na vigilância da área contaminada e na contenção deste, evitando o acesso a ele.
Estas categorias profissionais, que trabalharam no auge do acidente com as pessoas contaminadas e com o lixo radioativo, não dispunham à época, de informação ou preparação adequada para lidar com aquele tipo de perigo e com as exposições a que estariam sujeitos. Ignoravam, assim, as implicações futuras dessas exposições. Foram poucos os profissionais que utilizaram equipamentos de proteção, especialmente os que pertenciam ao quadro funcional da CNEN.
O fato é que os policiais militares e bombeiros trabalharam em pontos altamente expostos à radiação do Césio 137, desinformados e sem equipamentos mínimos de proteção. Boa parte deles reclama de problemas de saúde que teriam relação com o contato indireto com o césio. (SASSINE, 2007).
Estes profissionais foram enquadrados nos grupos 3 e 4, não recebendo assistência médica. ”(...) o fato de estarem no grupo 3 de vítimas não garante assistência médica e epidemiológica” (SASSINE, 2007). São submetidos a exames de rotina anuais, mas os resultados destes não são utilizados para estudos científicos de verificação de sintomas e conseqüências da exposição:
(...) os pensionistas da lei citada não apresentam dosimetria, portanto não dispõem de comprovação científica que se permita afirmar que foram irradiados ou contaminados pelo césio 137 por ocasião do trabalho prestado na cidade de Goiânia. Subsume-se deste entendimento que se trata, sim, de pensionistas, conforme critérios estipulados em lei e em vista do heróico trabalho desempenhado naqueles momentos de desespero que recaíram sobre Goiânia e sua gente; porém, [grifo] técnica e cientificamente não há parâmetros para a qualificação dos mesmos como “vítimas” e, sim, como “trabalhadores no acidente”. (CURADO e FURTADO, 2007)
Alguns conseguiram se enquadrar como pensionistas, e uma grande maioria ainda estão reivindicando na justiça o reconhecimento da sua condição de vítima, e os “benefícios” inerentes a esta situação (pensão, assistência à saúde e outros).
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Segundo o Presidente da AMVC-137, tenente Carlos Santana Lira (2007), os militares requerem também que o seu trabalho seja considerado como ato heróico, o que lhes asseguraria condições para arcarem com os custos dos medicamentos de que alegam necessitar: “O reconhecimento do ato de bravura vai elevar a auto-estima desses policiais, com uma graduação a mais na carreira e conseqüente aumento de salário (...)” (SASSINE, 2007). Apresentando-se, esta situação, como expressão do que Petryna (2002) designa de cidadania biológica, pois os policiais, a partir de sua condição de vítimas e, consequentemente, de ausência de saúde, passam a requerer seus direitos sociais.
A AMVC-137 afirma que, de um total de 500 policiais que atuaram no acidente apenas 150 estão filiados e contribuem financeiramente. Todavia, o valor dessas contribuições não é suficiente para pagar os custos de uma sede própria. Uma sede provisória funciona, por isso, na residência do Secretário da Associação, que atende os associados principalmente via internet, fazendo uso de um blog que ele atualiza pessoalmente. É também prestada assistência jurídica aos associados através de advogados que trabalham voluntariamente.
A associação teve duas diretorias, a atual tendo como presidente o 1º tenente Carlos Santana de Lira, o tenente coronel Elvio Mendes de Castro, que à data deste estudo assegurava o cargo de tesoureiro na diretoria. Desde a criação da Associação, o senhor Santos Francisco de Almeida assume o cargo de Secretário.
A relação entre a AV-Césio-137 e a AMVC-137 é tranqüila, mas há entre as duas associações algumas diferenças, nomeadamente no respeitante ao público alvo de cada uma ou, noutros termos, aos coletivos que representam, e aos seus objetivos respetivos. Estas diferenças, contudo, são secundárias em relação ao que aproxima as duas associações, visto que ambas reivindicam o reconhecimento da condição de vítimas para os afetados pelo acidente, a garantia de atendimento médico a todos os que se encontrem nessas condições, a ampliação e inclusão do acesso a benefícios sociais e, principalmente, o combate a discriminação. É notório o reconhecimento, pelas associações, da unidade entre os vários grupos de afetados:
Ele também reivindicou a extinção da definição de grupos (1,2 ,3 , 4) e salientou que as associações precisam afinar o discurso e fazer uma agenda comum, mas acrescentou que tem uma preocupação:”Todos os anos quando vai chegando o aniversário da
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tragédia, as autoridades se lembram da gente por causa do interesse da imprensa. Eu temo que daqui a dois meses a gente volte a ficar esquecido de novo”, disse. (MARCOS E ASSUNÇÃO, 2007).
As duas Associações são unânimes em afirmar a necessidade de reconhecimento do acidente radioativo de Goiânia e de suas vítimas, e de evitar o seu esquecimento. A construção de uma política da memória é, assim, uma preocupação central da atuação das Associações63.
6.3 - As vítimas do acidente com o Césio-137 - Assistência e Previdência Social:
Após o acidente, ficou praticamente impossível para o grupo contaminado retomar suas atividades rotineiras, seja devido aos problemas de saúde decorrentes do acidente, seja pelo preconceito acirrado que ainda persistia, visto que o medo que a comunidade tinha de se contaminar impedia que os radioacidentados se inserissem no mercado de trabalho. A isso se juntava a perda de suas casas e, juntamente com estas, de todos os seus pertences,
(...) sofreram, chocante e inesperadamente, a ruptura de todo um modo de vida. A começar de perdas materiais, consideradas imprescindíveis a um ser humano, tais como: casas, móveis, utensílios, vestuário, documentos pessoais, jóias, fotografias, repentinamente, se viram obrigados a serem deixados para trás. O que é pior, toda uma história de vida considerada, em poucos minutos, como lixo radioativo. As perdas afetivas também foram enormes, tais como: a separação e isolamento de membros do grupo familiar para tratamento nas unidades hospitalares, o distanciamento de parentes e amigos, as mortes, e ainda o sofrimento do processo de discriminação social por parte da sociedade de forma acirrada, levando-os a se discriminarem entre si e a se sentirem discriminados, fazendo parte real de um processo de exclusão social. (ALMEIDA, 2004:13).
A necessidade de o Estado assumir uma posição foi se tornando numa exigência, visto que as pessoas acolhidas no albergue e no CRF necessitavam retomar suas vidas depois das perdas sofridas devido ao acidente. Respondendo a essa exigência, o Estado providenciou o aluguel de residências para que as famílias se instalassem e, numa fase inicial, garantiu a estas uma cesta básica mensal e a
63 No Anexo “D” inclui-se uma entrevista com o jornalista Weber Borges, que apresenta suas posições sobre o acidente de Goiânia e defende a sua publicitação.
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compra semanal de alimentos como carne e verduras:
Com o acidente, sete residências foram demolidas. Em sua maioria, essas pessoas residiam em casas de aluguel ou em locais cedidos. Para uma minoria que possuía imóvel, o Governo do Estado se encarregou de fazer a reposição. Para aqueles que moravam em imóvel cedido, foi-lhes concedida uma moradia sob forma de doação. E para as pessoas que moravam, como popularmente se diz, de “favor”, ou seja, coabitavam em uma mesma residência e/ou lote, o Governo Estadual lhes garantiu temporariamente, o pagamento do aluguel. (ALMEIDA, 2004:22).
Somente em 1989, através da lei 10.977/89, o Governo do Estado de Goiás instituiu pensões para as vítimas do acidente com o Césio-137, fixando o valor máximo dessas pensões em 22 MVR – Maior Valor de Referência64 e o valor mínimo em 8 MVR. Foi estabelecido pelo Estado que o benefício seria proporcional ao agravo sofrido pela vítima, determinando os seguintes critérios para o acesso ao benefício e para a determinação do valor deste:
I - 22 (vinte e dois) MVR, para os pacientes com incapacidade funcional laborativa parcial ou total permanente, resultante do evento;
II - 15 (quinze) MVR, para os pacientes, não abrangidos pelo item anterior, irradiados e/ou contaminados em proporção igual ou superior a 100 (cem) Rads;
III - 11 (onze) MVR, para os pacientes irradiados e/ou contaminados em doses inferiores a 100 (cem) e equivalentes ou superiores a 50 (cinqüenta) Rads;
IV - 8 (oito) MVR, para os demais pacientes irradiados e/ou contaminados, não abrangidos pelos itens anteriores, sob controle médico regular pela Fundação Leide das Neves Ferreira, a partir da sua instituição até a data da vigência desta lei, desde que cadastrados nos grupos de acompanhamento médico I e II da referida entidade. (GOIÁS, 1989)
Este benefício abrangeria 149 dentre as 249 vítimas consideradas “incontestáveis”, ou seja, as diretamente atingidas, as quais desde o momento do acidente necessitaram de resposta urgente por parte do Estado de Goiás.
Em 1996, a União, através da lei 9.425/96 reconheceu o direito das vítimas do Césio-137 a assistência governamental Federal. Até então, não havia por parte deste ente governamental nenhuma assunção concreta de responsabilidades pela resposta ao acidente. Esta lei veio alterar essa situação, ao garantir pensão federal
64 O Brasil passava por um momento de transição econômica, tentando combater a inflação e efetuando através do MVR a correção das perdas inflacionárias.
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a vítimas já contempladas em 1989 pela pensão estadual, estabeleceu valores superiores a esta e ampliou o seu alcance, atendendo a 249 vítimas. Assim todas as vítimas do grupo 1 passaram a ter acesso a pensão federal ou estadual, ou em certos casos a ambas.
Somente em 2002, foi efetuado, através da lei 14.226/02, o reajuste do valor do benefício previdenciário já instituído e a extensão de seu alcance a mais 120 pessoas, entre eles “radioacidentados”, funcionários do CRISA, da Polícia Militar do Estado de Goiás, do Corpo de Bombeiros e da Companhia de Urbanização de Goiânia. Foi a primeira vez que radioacidentados que haviam trabalhado na resposta ao acidente foram reconhecidos como sujeitos de direitos. Assim, esta normativa apresentou uma característica que a diferenciava das primeiras, que era a manifestação de reconhecimento de vítimas, além dos radioacidentados, ou seja, daqueles que haviam estado envolvidos no trabalho de assistência e segurança durante a “operação” Césio-137, e a quem até então não era reconhecido o estatuto de vítimas nem era garantida qualquer forma de assistência pelo Poder Público.
A própria lei apresentava uma lista de 417 pessoas que poderiam pleitear a condição de beneficiários, estabelecendo uma série de critérios para que destes 417 fossem retirados 120 beneficiários:
Art. 3º. Para a definição dos beneficiários de que trata o art. 2º, serão observados os seguintes critérios, em ordem sucessiva:
I - servidores e agentes requisitados junto à administração indireta, portadores de moléstia:
a) grave; b) crônica;
II – para os demais servidores e agentes requisitados junto à administração, que não manifestaram doença grave ou crônica, no tempo médio de latência de quinze anos após o acidente (Nota Técnica n. 15, de 15 de dezembro de 2001, elaborada pelo Ministério da Saúde/FUNASA):
a) mais idoso; b) maior número de dependentes;
c) maior tempo de serviço estadual; d) maior tempo de serviço público. (GOIÁS, 2002)
Através desta lei, o Estado estabelecia a possibilidade de que, para além das inclusões manifestadas (120 pessoas), as demais pessoas constantes da lista (417 pessoas) pudessem pleitear a sua inserção:
Art. 4º. Fica garantida a concessão da pensão especial prevista no art. 2º aos elencados no Anexo II desta Lei, não incluídos dentre o número de beneficiários ali definidos, desde que apresentem, a qualquer tempo, manifestação de moléstia diagnosticada como grave ou crônica, comprovada através de procedimento administrativo junto
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à AGANP, com acompanhamento da SULEIDE. (GOIÁS, 2002)
A lei 14.226/02 possibilitou que outras pessoas que acreditassem se enquadrar na condição de radioacidentados pudessem requerer a concessão da pensão especial, desde que satisfizessem os critérios nela discriminados:
Art. 6º. As pessoas que se considerarem enquadradas na situação descrita no art. 2º desta Lei e não tenham seus nomes relacionados no Anexo II poderão requerer a concessão de pensão especial, em procedimento administrativo próprio junto à AGANP, utilizando-se de todos os meios de prova em direito admitidos.
Parágrafo único. Para concessão dessa pensão deverão ser observados os mesmos critérios estabelecidos no art. 3º e respeitado o limite do art. 2º.
Art. 2o. (...) pessoas a serem definidas pela Agência Goiana de Administração e Negócios Públicos - AGANP, com intervenção obrigatória da Secretaria da Saúde, através da Superintendência Leide das Neves Ferreira - SULEIDE, dentre aquelas relacionadas no Anexo II desta Lei, após cadastramento e avaliação minuciosa. (GOIÁS 2002)
Apesar das sucessivas medidas legislativas destinadas às vítimas do acidente, e da ampliação, através dessa legislação, dos grupos incluídos nessa categoria, as respostas efetivas têm se realizado paulatinamente, e em função de ações individuais e de mobilizações coletivas, muitas vezes motivadas pelas dificuldades enfrentadas cotidianamente pelas pessoas atingidas no acidente. É importante destacar a categorização como vítimas de algumas pessoas que trabalharam ou estiveram inseridas no atendimento às vítimas, no acondicionamento e na guarda do lixo radioativo. O reconhecimento dessa condição se deu somente quando, em virtude da experiência de doença no plano pessoal ou em descendentes, vieram a considerar à possibilidade de haver algum nexo entre o acidente e essa condição de saúde.
No entanto, o ônus da prova da “qualidade” de vítima continua a cair sobre as pessoas afetadas. A Lei 9.425/96, que viria ser de fato posta em prática em 2004, estabeleceu que a determinação da condição de vítima passasse obrigatoriamente pela sujeição dos radioacidentados a uma junta médica, colocando assim nas mãos dos peritos a decisão sobre a atribuição ou não daquela condição65.
65A lei 15.071/2004 institui a Junta Médica composta por 5 médicos de diferentes especialidades, os quais, entre outras atribuições, devem “atestar o nexo existente entre as seqüelas impeditivas do desempenho profissional e/ou aprendizado de maneira total ou parcial dos envolvidos e o acidente
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Nesta situação, o número de vítimas do acidente com o Césio-137 vem crescendo na medida em que se vai ampliando a sua informação em relação ao acidente e a sua capacidade de acesso ao Poder Judiciário, que tem sido demandado com vistas ao reconhecimento dos direitos dos radioacidentados. As demandas têm ocorrido individualmente, com o apoio, principalmente, da AV-Césio-137 e da AMVC-137. As dificuldades de enquadramento nos critérios definidos crescem com o passar do tempo, visto que:
(...) a Lei Federal nº 6453/77 em seu artigo 12 estabelece prazos prescricionais para as vítimas buscarem seus direitos indenizatórios, que é de 20 anos. E já se passaram aproximadamente 19 anos. Sendo que grande parte das vítimas cansadas de enfrentar os descasos das autoridades responsáveis em solucionar o problema, desistem de buscar seus direitos. O Estado de Goiás através da Lei 15.071/2004 está convocando as novas vítimas com a finalidade de procurarem a SULEIDE – Superintendência Leide das Neves Ferreira, para requerer a Pensão Especial Federal. Para isso a vítima tem que se submeter a uma Junta Médica Oficial Específica, com fins de comprovação do Césio 137, prevista nos arts. 2º e 3º da Lei Federal nº. 9425/96, mas nenhuma vítima do Césio não passa nesta perícia, devido critério rigoroso que não condiz com a realidade das vitimas periciadas e diante de dúvidas da referida junta médica oficial da SULEIDE - Superintendência Leide das Neves Ferreira da Secretaria Estadual de Saúde, as vítimas ficam desamparadas do poder público, em razão da não admissão do nexo causal entre as doenças e as seqüelas, pois após 20 anos, depois do sumiço dos vestígios da radiação, quer achar radiação onde não tem mais, restaram apenas os efeitos nos organismos das vitimas decorrentes da contaminação/radiação com Césio 137. (SANTOS, 2005).
Em maio de 2008, 199 servidores públicos, entre eles policiais militares que haviam trabalhado na contenção de pessoas e vigilância das áreas contaminadas e do lixo radioativo, foram contemplados com a passagem a beneficiários da pensão instituída na lei nº. 9.425/96:
O presidente da Associação das Vítimas do Césio, Odesson Alves Ferreira, informa que o benefício estadual era reivindicado desde 2003 por 860 pessoas. Destas, 415 são servidores públicos estaduais, e o restante, trabalhadores ou moradores das imediações dos locais mais contaminados pelo césio.
O presidente da Associação dos Militares do Césio 137, primeiro-tenente Carlos Santana Lyra, assinala que, ao conceder a pensão, o
radioativo”(Art. 3º, inc. II).
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governo reconhece a dor vivida atualmente por muitos militares que atuaram na tragédia. “A partir de agora, muitos colegas que ficaram com seqüelas físicas ou psicológicas terão melhores condições financeiras para adquirir medicamentos”, exemplifica. (SILVA, 2008)
É importante mencionar que, das cerca de 600 vítimas pertencentes ao grupo 3, apenas 199 foram consideradas pensionistas, o que leva a concluir que, apesar de o benefício estar sendo reivindicado desde 2003, já há 20 anos que era de conhecimento público a condição de vítima destas pessoas, pois as mesmas haviam sido classificadas e inscritas na então FUNLEIDE, ainda na fase que imediatamente se seguiu ao acidente.
A proteção social estatal tem, pois, sido uma conquista alcançada a duras penas para os radioacidentados, após um longo período de reivindicações e lutas coletivas. Nesse processo, o Estado tendeu a se posicionar como uma entidade neutra, alheia ao processo, secundarizando o apoio às vítimas em relação aos imperativos do desenvolvimento. Esta situação não tem, por isso, proporcionado o debate sobre qual deve ser o papel do Estado diante de situações de catástrofe de grande alcance, ainda que não deixe de, através de medidas que vão sendo aprovadas ou aplicadas, muitas vezes, como resposta a longos períodos de luta e de reivindicação, realçar publicamente a sua função de proteção dos cidadãos.
Em acidentes ampliados como os de Bhopal e de Seveso, podem encontrar-se semelhanças óbvias com o acidente com o Césio-137 em Goiânia. Em todos estes casos, as vítimas sofrem em seu cotidiano as conseqüências dessas catástrofes, sendo obrigadas a lutar por comprovar judicialmente a vinculação entre a sua condição de saúde e o acidente. Enquanto isso, as empresas envolvidas e os Estados procuram enjeitar ou limitar a sua responsabilidade na prevenção dos acidentes e na resposta a estes, respondendo de modo tardio e, geralmente, insuficiente.
6.4 - As vítimas do acidente com o césio-137 e o atendimento à saúde
Após o período de isolamento no albergue, CRF e Hospitais, foi providenciado acompanhamento médico às vítimas do grupo 1 e 2, por uma equipe de saúde pertencente à então FUNLEIDE. Estas passaram também a ser atendidas pelo IPASGO - Instituto de Previdência e Assistência Social do Estado de Goiás:
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(...) as pessoas incluídas nos Grupos I, II e filhos usufruem da cobertura integral do Plano de Saúde do IPASGO – Instituto de Previdência e Assistência Social do Estado de Goiás, tendo seus exames, consultas e remédios totalmente custeados pelo Governo Estadual. Alguns deles encontram-se inclusos nos Programas Sociais do Governo (Renda Cidadã, Passe livre, Vale Gás). (ALMEIDA, 2004:26)
O IPASGO é um instituto previdenciário e de prestação de serviços de saúde que atende a servidores públicos do Estado de Goiás. O pagamento deste instituto é efetuado através de desconto de percentual de seu salário e do pagamento de co-participação nos serviços individualmente prestados, que se dá através de uma guia de recolhimento emitido quando são requeridos esses serviços.
Os radioacidentados pertencentes ao grupo 1 e 2 vincularam-se a este Instituto, sendo-lhes prestados serviços de saúde e concedida a isenção do pagamento da guia de recolhimento.
Neste contexto, as vítimas do grupo 1 e 2 têm atualmente opções diferenciadas de atendimento: além do atendimento médico para o monitoramento (semestral), podem realizar outras consultas que julgarem necessárias nas dependências da SULEIDE e do HGG, locais que mantêm suas fichas pessoais, e onde podem ser atendidos por profissionais de saúde credenciados. Estes profissionais são conveniados pelo Sistema Único de Saúde e vinculados à Secretaria Estadual de Saúde. As vítimas podem também ser atendidas por profissionais de saúde da rede privada através do convênio com o IPASGO, tornando assim possível o acesso a uma rede mais ampla de atendimento.
(...) mesmo não sendo em grande maioria (ex-) servidores do serviço público, as vítimas de Grupos I e II e posteriormente os filhos dos integrantes destes dois grupos, com a interveniência da SES-GO e da SULEIDE, conquistaram o direito ao convênio de saúde do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado de Goiás (IPASGO) garantindo assim além do atendimento prestado pelos profissionais de saúde da SULEIDE, também, o acesso a uma gama infinita de profissionais em todo o Estado de Goiás. Lembre-se ainda que as guias de exames não têm custos e o custo das guias de consulta médica e odontológica são arcados pela SULEIDE por meio da SES-GO, excepcionando-se os períodos em que os recursos não são repassados à SULEIDE. Também faz parte desta assistência a distribuição de medicamentos e o transporte dos pacientes. (CURADO e FURTADO, 2007).
Esta gama de opções, contudo, não é suficiente para garantir às vítimas do
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acidente um atendimento diferenciado, e não cria para elas um sistema de monitoramento e controle efetivo. Um sistema desse tipo exigiria a manutenção de dossiês individuais e uma organização orientada para o acompanhamento e monitoramento específico de pessoas apresentando condições ligadas à exposição à radioatividade.
Desta forma, apesar de a SULEIDE realizar monitoramento através de consultas e exames periódicos, não exige obrigatoriedade de contra-referência por parte dos profissionais externos à instituição, o que dificulta a realização de acompanhamento individual sistemático destas pessoas.
A respeito do atendimento médico na SULEIDE, Ferreira (2007) assinala a existência de diferenças no atendimento entre profissionais. Alguns escutam as queixas dos pacientes e imediatamente afirmam não haver relação com a exposição ao Césio-137:
(...)”Os médicos da Suleide (superintendência Leide das Neves) só sabem dizer que tudo o que sentimos não tem nada a ver com o Césio”,resume Noraney. Para ela, é humilhante ter de lutar pelo reconhecimento de um título, que se pudesse, não buscaria. ”Não vou desistir de lutar”, assegura. (BORGES, 2007)66
Outros observam que as dores e perturbações sentidas pelos pacientes podem ou não ser decorrentes da contaminação, e que a situação requer observação e atenção. Para os radioacidentados, esta situação cria muita insegurança, incerteza, preocupação com o futuro.
(...) o que acontece é que a gente não sabe o que, na realidade, pode acontecer a partir do acidente. Então existem estes dois lados, a gente (vítimas) perplexo e [grifo] entre eles (os médicos) há um conflito, porque eles não falam a mesma língua.”(...) Alguns costumam dizer: você está com o Césio na cabeça(sic)67(FERREIRA, 2007).
Encontramos, neste caso, uma situação que é hoje corrente, em particular, entre as populações ou grupos afetados por problemas ambientais, e que procuram
66 O marido de Noraney foi enquadrado no grupo 1, seus dois filhos foram enquadrados no grupo 2. Ela está enquadrada no grupo 3, apesar de ter mantido contato permanente com filhos e marido.
67Idem anterior.
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fazer aceitar a existência de um nexo entre os seus problemas de saúde e as exposições a agressões ambientais, perante o ceticismo ou a negação de profissionais, para quem a prova desse nexo não existe. Mais uma vez, o ónus da prova recai sobre os radioacidentados, mas desta vez é o seu corpo que deve fornecer a prova, através de algum sintoma que demonstre inequivocamente a existência de uma relação entre a exposição ao Césio-137 e as patologias reveladas nos exames médicos.
Note-se que a SULEIDE vem arcando com o transporte das vítimas do grupo 1 e 2 para realização de consultas, bastando que para isso comuniquem com antecedência a data e hora, possibilitando o agendamento do transporte. Esta é uma prática existente desde 1988.
6.5 - O fornecimento de medicamentos
No período pós-acidente, o Estado forneceu ao grupo 1 e 2 todos os medicamentos necessários às vítimas, que vão desde analgésicos até medicamentos sob controle. Não há medicamentos específicos para combater os efeitos da radiação, mas utiliza-se uma grande variedade de medicamentos dirigidos às inúmeras patologias que se tornaram freqüentes neste grupo de pessoas: hipertensão arterial, gastrite, alterações psiquiátricas, displasia mamária, osteoporose, úlcera, dores musculares, irritabilidade, ressecamento da pele e outros.
Em 2006, os medicamentos começaram a faltar e a SULEIDE deparou com dificuldade em resolver a questão. O problema decorria da ausência de autonomia financeira e administrativa desta instituição, sem capacidade legal de realizar licitação, procedimento obrigatório para qualquer ente público para aquisição de mercadorias de qualquer tipo.
A SULEIDE perdeu essa capacidade quando foi inserida na estrutura da Secretaria de Estado da Saúde, no ato de sua transformação em SULEIDE. Contudo, pôde ainda efetuar suas próprias compras até o ano de 2006. Nesse ano, com a nova sistemática de licitações introduzida pela lei 8.666/93, a situação tornou-se inviável, devido à demora na elaboração e conclusão dos processos e, fundamentalmente, à morosidade do pagamento aos fornecedores de medicamentos, que neste caso, preferiam não se candidatar a venderem para o Estado, visto que os produtos eram encomendados em grande variedade e em
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pequena quantidade, implicando grandes dispêndios de tempo no procedimento e mais ainda no recebimento.
A situação viria a agravar-se com a lei 9.787/99, que garantia que os medicamentos adquiridos pela Secretaria de Estado da Saúde deveriam estar incluídos na Relação Estadual de Medicamentos - RESME, possuir catalogação genérica conforme o principio ativo utilizado, e não poderiam ser adquiridos sob a forma de marcas patenteadas por laboratórios, mas apenas sob a forma de genéricos.
As dificuldades eram, certamente, de ordem burocrática e administrativa, mas elas decorriam, principalmente, da ausência de interesse na busca de soluções práticas, mesmo que provisórias, para responder à situação dos grupos afetados pelo acidente:
Enfim, neste ano de 2007, está em andamento uma série de licitações gerais de medicamentos básicos embasados na RESME-2006, deflagrada pela Gerência de Suprimentos da Superintendência de Administração e Finanças, nas quais está inserida a listagem de remédios da SULEIDE. Essas licitações englobam todas as unidades da SES-GO fornecedoras de medicamentos com o objetivo de realizar aquisições com economia de escala, com menores custos e conseqüentemente evitando licitações concomitantes e fracionadas sobre o mesmo objeto, o que resultaria em burla à Lei de Licitações (8.666). Em suma, a citada superintendência não possui mais autonomia para realizar licitação de medicamentos isoladamente na SES-GO. (CURADO e FURTADO, 2007)
A Associação, aproveitando a efeméride dos 20 anos do acidente, trouxe à tona as dificuldades por que estão passando os radiolesionados, sendo a ausência do medicamento uma questão central e polémica, que só encontraria solução depois de trazida a público. A solução apareceu após mais de 8 meses de dificuldade de acesso aos medicamentos, com o retorno ao “reconveniamento” de farmácia, que foi mediado por manifestações públicas de descontentamento por esse fato, por parte da AV-Césio. Após quase um ano de dificuldades de acesso a medicamentos, foi realizado o convênio de Farmácia. Com compra direta a uma única Farmácia, nos moldes do que era feito nos primeiros momentos pós-acidente, e segundo o governo goiano, o problema será resolvido com um convênio, já firmado, com uma rede de farmácias, que passou a fornecer os medicamentos diretamente às vítimas68.
68 O Anexo D traz uma entrevista com o jornalista Weber Borges que apresenta as condições de vida
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6.6 - A versão das vítimas sobre o atendimento da SULEIDE
O acidente com o Césio-137 em Goiânia tem muitas similaridades com outros acidentes ampliados, pois a cápsula ficou aberta durante 16 dias no centro da cidade, e todas as pessoas que com ela tiveram contato direto e indireto circularam livremente. Não é possível, por isso, determinar o número exato de vítimas. Entre as vítimas oficiais estão os que realizaram a abertura da cápsula e os parentes e amigos que tiveram contato com eles naquele período de tempo (designados de grupo 1); deve ainda acrescentar-se a estes todos os que estão reivindicando seu reconhecimento na justiça: policiais, bombeiros, garis, pedreiros, agentes de saúde, assistentes sociais e outros, ou seja, todos os que tiveram algum grau de exposição direta ou indireta à radioatividade. Estas pessoas, na sua maioria, não tinham a menor idéia da gravidade ou do risco da situação em que estavam atuando. A maioria foi convocada ou se voluntariou para trabalhar na descontaminação e recolhimento dos rejeitos radioativos, sem ter ao seu dispor equipamento de proteção.
Há ainda pessoas que reivindicam o seu enquadramento na condição de vítimas. Entretanto, aqueles que já estão nessa situação alegam que os problemas de saúde decorrentes da exposição à radioatividade já se manifestam na intensificação de problemas de saúde como a hipertensão, depressão ou osteoporose, entre outros69. Além disso, é sabido que, a partir de 15 anos de latência, outros problemas de saúde mais graves tendem a se manifestar: passa a existir uma relação inversamente proporcional entre o agravamento dos problemas de saúde e a tendencial diminuição da assistência biopsicossocial prestada às vítimas.
O acidente já completou 20 anos e a assistência às vítimas do grupo 1 e 2 não tem tido a continuidade e intensidade que seriam necessárias. Essa assistência tem sofrido inúmeras modificações, as quais, na maioria das vezes, foram fortemente questionadas pelas vítimas, que as associaram à desqualificação nos seus atendimentos.
Como exemplo dessa situação pode-se mencionar a transformação da
das vítimas e em especial sua carência no tocante aos medicamentos.
69 Verificar no Anexo “B”, gráfico resultado de pesquisa realizada pelo Jornal O popular com as doenças que os radioacidentados tiveram após 15 anos do acidente.
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FUNLEIDE em SULEIDE sem a necessária justificação das vantagens decorrentes dessa transformação, que consistiu principalmente na transferência de atendimentos médico e odontológico realizados na sede da SULEIDE para o HGG, saindo de uma estrutura de atendimento específico aos radioacidentados para um atendimento de caráter mais geral, indiferenciado em relação a outras demandas.
O acidente de Goiânia apresenta, assim, características que em muitos pontos o aproxima de outros acidentes ampliados, como os de Bhopal, Seveso e outros. É de sublinhar, em particular, em casos deste tipo, a tendencial desresponsabilização – ou a atribuição de responsabilidades sem proporção com o alcance real do acidente - da empresa, da indústria ou da entidade envolvida diretamente na criação das condições que levaram ao acidente. A justificação frequentemente utilizada é precisamente a de que acidentes, por muito graves que sejam, são acidentes, e são de esperar como parte da laboração dessas entidades. Mesmo quando existe um processo efetivo de responsabilização, a morosidade da justiça e a desproporção de meios mobilizáveis pela empresa/entidade e pelas vítimas funcionam como um dissuasor, e levam a que, muitas vezes, as vítimas acabem por aceitar indenizações que ficam muito aquém da compensação que deveria ser exigida à entidade responsável pelo acidente e pelos danos decorrentes deste. As vítimas do acidente tornam-se, assim, mais uma vez, vítimas de um sistema que muitas vezes lhes impõe o ônus da prova de que os seus problemas de saúde podem ser considerados como decorrentes do acidente.
As vítimas encontram-se, assim, numa posição de poder desigual em relação às entidades responsáveis pela sua situação. Nessas circunstâncias, a atuação do Estado e, em particular, do poder judiciário se torna um elemento crucial para reforçar a posição das vítimas, em nome da defesa dos direitos e do bem-estar dos cidadãos e das comunidades. Nem sempre, contudo, a atuação do Estado e dos seus agentes responde ás expectativas das vítimas, que se vêem remetidas para um papel passivo, sem intervenção ativa na discussão dos problemas e na definição das respostas a estes: “o governo às vezes toma decisões sem convocar a gente, sem falar com a gente, eu não tô dizendo em relação, a direção aqui da SULEIDE(...).(sic)”, (FERREIRA,2006).
Apesar de todas as limitações e dificuldades, contudo, a AV-Césio-137 tem conseguido ser convidada a participar de audiências públicas sobre temas relativos ao nuclear, participando sempre que pode. No entanto, as vítimas, de uma forma
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geral, manifestam grande resistência a participar de palestras, seminários ou outros eventos públicos, com exceção de eventos que discutam problemas práticos cotidianos e o modo de os resolver, como, por exemplo, o reajuste de pensões. Este poderá ser um caminho diferente para uma maior capacidade de ação pública, construído a partir da intervenção sobre o cotidiano.
6.7. As respostas das pesquisas científicas:
As pesquisas realizadas até ao momento não estabeleceram um nexo causal considerado suficientemente robusto a partir de critérios epidemiológicos e clínicos entre as doenças dos radioacidentados e o fato de estes terem sido contaminados pelo Césio-137. Um exemplo desta situação é o recente estudo apresentado no ano de 2006, coordenado por Sérgio Koifman, pesquisador da Fundação de Investigação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ em parceria com pesquisadores da SULEIDE, IRD E UFG.
O estudo foi realizado com base nos registros e relatórios, conservados na SULEIDE, referentes a vítimas pertencentes ao grupo 1 e seus descendentes, definindo como grupo de controle a população que não teve contato com o Césio-137. A conclusão, segundo os pesquisadores responsáveis, foi de que não existia diferença entre o padrão de comportamento entre doenças e causamortis do grupo de radioacidentados em relação ao grupo não exposto à radiação:
(...) revelou um excesso de risco de morte da ordem estatisticamente não significativo com SMR= 173 (95% I.C. 78-385), um menor risco de incidência de neoplasias comparativamente com a população geral (SIR = 47, 95% IC 12-187) e a inexistência de agrupamentos espaciais de casos de leucemia sugestivos de estarem associados ao acidente radioativo. O acompanhamento do crescimento durante a infância e adolescência dos descendentes dos indivíduos diretamente afetados pelo acidente apresentou-se dentro dos padrões de normalidade observados na população geral brasileira. A avaliação da função tireoidiana dos grupos com exposição direta ao césio radioativo não apresentou características que as diferenciassem dos padrões observados em populações sadias. (KOIFMAN et al., 2006)
Esta conclusão provocou interpelações pela Associação das vítimas, que considerava que a pesquisa deveria abranger as vítimas em geral, e não as que haviam sido seleccionadas especificamente pelo grupo de pesquisa.
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A Associação das vítimas do Césio-137, em levantamento simplificado realizado nas residências situadas nos locais considerados como os principais focos de radiação, encontrou mais de 50 casos de câncer, situação que foi denunciada, mas não chegaria a ser verificada por nenhuma pesquisa (Morais, 2007). -Foi assim questionada a ausência de consideração de outras vítimas, que poderiam levar a considerar um leque mais amplo de patologias com possível associação com a exposição ao Césio-137 do que as que haviam sido abrangidas na pesquisa.
Perante estas dúvidas, a AV-Césio-137 remeteu a versão preliminar do referido relatório ao pesquisador Marcelo Firpo de Souza Porto da FIOCRUZ, que elaborou nova análise, também preliminar. Apoiando-se nos princípios da justiça ambiental, esse pesquisador afirmaria ser muito sensível à situação atual dos radioacidentados, que configuraria uma manifestação de injustiça ambiental70.
Porto (2007) avaliou e confirmou a plausibilidade das queixas, incertezas e dúvidas dos associados, entendendo que essas pessoas deveriam ser respeitadas em seus direitos e, por isso, deveriam receber respostas às suas dúvidas. Interrogações e preocupações. Segundo Porto (2007), “todas as preocupações são legítimas e deveriam ser respondidas futuramente, seja num relatório definitivo, seja em futuras investigações e medidas a serem realizadas”:
Caso estes procedimentos tivessem ocorrido anteriormente, os questionamentos realizados pela Associação de Vítimas não teriam ocorrido desta forma. Cabe esclarecer que existe uma razoável resistência por parte da população local frente aos cientistas e instituições que já realizaram atividades de investigação sem que os resultados e os benefícios para as vítimas e populações afetadas tenham se tornado claros. Além disso, os temores diante das incertezas frente ao futuro e ao sentimento de descuidado torna ainda mais delicada qualquer investigação feita junto à população. Outro fator, que já deveria ter sido esclarecido há bastante tempo, mas que ainda se encontra presente nos discursos de alguns profissionais e instituições, se refere à tentativa de criminalização da população afetada face aos episódios que caracterizaram a movimentação inicial do equipamento médico radioativo que continha o Césio. Apesar da justiça já ter inocentado todos os trabalhadores
70 A injustiça ambiental ocorre quando o maior ônus do desenvolvimento recai em minorias ou em populações especialmente vulneráveis. Porto recorre, para fundamentar a sua posição, a um trecho do Manifesto de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental - RBJA: “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis.” (Manifesto da RBJA apud PORTO,2007). Consta no Anexo “C” a íntegra do Manifesto de lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental -RBJA.
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envolvidos com a movimentação e abertura da cápsula de Césio 137, e concentrado toda a responsabilidade naqueles diretamente envolvidos no abandono do equipamento perigoso nos escombros de uma edificação abandonada há mais de dois anos, ainda hoje infelizmente este discurso retorna por parte de certos profissionais e contribui simbolicamente para criminalizar e [grifo] tornar ainda mais vulneráveis as populações afetadas pelo acidente. (PORTO, 2007).
Uma questão que Porto explicita é que a comunicação a respeito da metodologia da pesquisa não foi realizada de modo adequado: as vítimas não foram informadas da forma como seria realizada, quais os critérios que seriam utilizados. Enfim, as demandas das vítimas, que sofrem cotidianamente os problemas decorrentes do acidente, não foram incorporadas no desenho da pesquisa:
“Não se trata de eliminar a distinção entre conhecimento técnico e não-técnico, mas antes de a tornar mais complexa a partir do pressuposto de que a própria fronteira entre o técnico e o social é uma fronteira móvel, que deve ser redefinida em função da situação e do problema, através das contribuições de todos os actores envolvidos e, em particular, de todos os que terão de viver com as conseqüências das decisões que forem tomadas. (SANTOS et al., 2004:48)
Neste caso, a inadequação do desenho da pesquisa corresponde à ausência de valorização dos problemas suscitados pelas vítimas, pondo em causa, dessa forma, a credibilidade da pesquisa e a confiança nas instituições que deveriam agir como garantidoras e promotoras do interesse público e do bem-estar e da proteção de populações e de comunidades. Por isso é compreensível a contestação e a revolta das vítimas perante um estudo que acaba por desvalorizar a sua condição, a sua experiência e o seu sofrimento:
“os médicos não aprenderam nada, pois não foi feito qualquer tipo de pesquisa. Se você perguntar aos médicos que trabalharam conosco nesses 15 anos o que a radiação pode fazer ao ser humano, eles não saberão responder porque não foi feito nenhum tipo de estudo. Eles não fizeram o acompanhamento comparativo entre as doenças que a população tem e que a população radioacidentada apresenta”.(VIEGAS, 2003).
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CONCLUSÃO
O rompimento da cápsula de Césio-137 aparece como um exemplo de acidente ampliado, tanto pelo fato de não ter decorrido de um ato deliberado como pela abrangência e duração dos seus efeitos. 20 anos após a sua ocorrência, muitas questões relativas ao acidente estão ainda à espera de resposta adequada, como, por exemplo, a efetivação do monitoramento das vítimas, a continuidade da assistência médica, psicológica e social a que têm direito e o pagamento das indenizações pelas perdas e danos sofridos.
A posição dos órgãos governamentais em relação ao acidente de Goiânia apresenta fortes semelhanças com o que ocorreu em outros acidentes ampliados como Seveso e Bhopal. O Estado e as suas instituições assumiram-se como garantes da assistência às vítimas e do seu bem-estar, mas as respostas foram pontuais, insuficientes e inadequadas à magnitude e persistência dos problemas, associadas a uma postura paternalista.
Não é visível, neste processo, uma posição de respeito pelos radioacidentados e de reconhecimento da dívida social com eles contraída. Ao tratar os radioacidentados como beneficiários de assistência e não como cidadãos com direitos, as ações dirigidas às vítimas do acidente tornam-se potencialmente estigmatizantes para estas. As respostas paliativas que tem sido dadas, no âmbito da atenção à saúde das vítimas, da forma como vêm sendo oferecidas, não são suficientes para possibilitar a recuperação da sua auto-estima e amor-próprio. Elas são insuficientes para que os radioacidentados consigam reconstruir uma identidade que não esteja permanentemente vinculada à condição de vítima, através, por exemplo, de atividades de identificação ou valorização cultural e social que permitam a revalorização pessoal.
É corrente a ideia de que a assistência e a contenção enquanto formas de “resolver” as situações decorrentes do acidente serão manifestações de um tipo de intervenção competente e eficaz por parte do Estado e das suas instituições. Mas a história do acidente e as suas sequelas podem ser vistas, alternativamente, como uma sequência de manifestações de irresponsabilidade (exemplificada no despreparo perante os riscos e na intervenção sobre o acidente), incoerência e
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negligência não só para com as vítimas identificadas, mas principalmente para com a população goianiense, que ainda convive com o medo e as dificuldades de aceitação do acidente e das suas consequências.
É importante reiterar que um acidente com radioatividade pode ter efeitos tão catastróficos quanto acidentes associados à emissão de gases ou à liberação de produtos tóxicos. É necessário, por isso, alargar a categoria de acidente ampliado, não a limitando, por exemplo, a determinados tipos de substâncias ou de agentes contaminantes, mas considerando-a sob o ponto de vista do âmbito de seus impactos, para além dos impactos individuais, no espaço e no tempo, com consequências negativas duráveis. .
Procurar responder a estas situações através, por exemplo, da elaboração de normas específicas para cada tipo de acidente, como os decorrentes da violação de aparelhos radioativos, e consignar as normas sobre como agir nessas situações num manual seria cair no erro de produzir uma avalanche de criação de manuais, que à falta de intervenções estruturantes e com a participação dos interessados, acabariam por se tornar inventários de medidas não aplicadas, como acontece com frequência no Brasil, mas também noutros países.
O Planejamento de Emergência terá de ser mais efetivo e voltado para situações de catástrofe, mobilizando o “know how” necessário à caraterização das situações, à intervenção sobre estas e ao atendimento de possíveis vítimas contaminadas, com equipamento suficiente e adequado para garantir a segurança dos trabalhadores que realizarão a contenção dos locais contaminados, e, principalmente, equipes permanentes atualizadas, dispondo de conhecimento teórico e prático na sua área de atuação, bem como de contato permanente e de diálogo com as populações e grupos sujeitos a acidentes ampliados. Esse “know-how” terá de ser mais do que conhecimento técnico ou pericial: ele terá de ser também conhecimento situado sobre as condições, a história e as experiências dos que vivem em situações de ameaça potencial.
Assim, frente aos riscos sociais e tecnológicos que fazem parte da nossa cotidianidade, torna-se imperioso que na política de segurança pública e de defesa civil sejam incluídos grupos militares e civis devidamente preparados e permanentemente qualificados para as ações exigidas por situações como as de acidentes industriais, químicos ou radioativos ampliados.
Nas sociedades actuais, saturadas de tecnologia e cada vez mais dependentes
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de sistemas tecnológicos complexos e de grande dimensão, exige-se mais do que o controle rotineiro de atividades. É indispensável um efetivo planejamento de ações de resposta a situações de emergência e, acima de tudo, é crucial aprender com a experiência de situações anteriores, de modo a evitar erros e dificuldades de resposta como as que se encontraram no caso do acidente radioativo de Goiânia. Isso passa por um forte investimento em políticas públicas de educação, seguridade social e saúde, e no envolvimento ativo dos cidadãos e das comunidades em processos democráticos de debate, planejamento e decisão, ou seja, de efetivo exercício do controle social.
Somente nestas condições a informação deixará de ser um processo de sentido único, dos que “sabem” para os que são encarados como vítimas passivas de situações que ultrapassam a sua compreensão ou a sua capacidade de agir. A participação das populações e a mobilização das suas experiências e conhecimentos relativos às ameaças e aos perigos que sobre elas pesam é, assim, uma condição para que os relatórios produzidos por instituições públicas ou por peritos possam tornar-se verdadeiros documentos de trabalho, sujeitos a discussão e a reformulação através do seu escrutínio público. As associações e movimentos sociais constituem, neste domínio, atores indispensáveis a essa democratização da prevenção dos acidentes, e quando estes ocorrem, da resposta a eles, assim como mediações importantes no acesso a órgãos de decisão com participação popular, como os Conselhos de Saúde, como este caso demonstra..Essa é uma condição de realização do que neste trabalho, e seguindo Adriana Petryna, se designou de cidadania biológica, de acesso a direitos de cidadania que permitam responder a situações de dano biológico.
É importante enfatizar que o Brasil, por ter no seu território usinas nucleares, depósitos de rejeitos radioativos e outras fontes de radioatividade e de contaminação radioativa de substâncias radioativas, necessita de um amplo sistema preventivo que permita ir para além do âmbito local, das situações relativas a cada uma das usinas ou dos depósitos de resíduos. Os planos de emergência deverão ter em conta que um acidente radioativo é uma instância típica de um acidente ampliado, e por isso necessita, igualmente, de planos de prevenção e de resposta também ampliados, no espaço e no tempo. Qualquer instalação nuclear deverá contar com um plano de emergência para acidentes com radioatividade, com uma equipe especializada e adequadamente equipada, de modo a segurança dos
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trabalhadores que irão realizar a contenção e a segurança da área contaminada. É preciso pensar de maneira ampliada e desmistificar a alegada excepcionalidade do acidente de Goiânia. Onde há materiais e equipamentos radioativos, a ocorrência de acidentes ampliados deste tipo é sempre uma possibilidade. Não será de espantar, por isso, que os setores que defendem a política nuclear existente atualmente no Brasil tenham procurado minimizar o alcance, as consequências e a exemplaridade do acidente de Goiânia, que exigiriam, pelo menos, a abertura de um sério debate público sobre o nuclear e as suas implicações no plano da segurança, da saúde e do ambiente.
Como aconteceu em Goiânia, é a partir da indignação das vítimas, da sua persistente mobilização e organização social e da sua capacidade de publicitar o seu sofrimento e de afirmar os seus direitos de cidadania que poderá começar a desenhar-se um novo tipo de resposta pública a situações de vulnerabilidade e de injustiça ambiental que abrangem igualmente as populações e grupos afetados ou ameaçados pelos efeitos negativos e perversos do nuclear e dos usos da radioatividade.
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APÊNDICE
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APÊNDICE A - Questionário apresentado ao Presidente da Av-Césio-137 Em 04/09/06, na Sequência de Entrevista realizada em 06 de Agosto de 2006.
1. Qual a sua opinião sobre a Competência da CNEN para lidar com problemas como o do Césio-137 em Goiânia?
2. As vitimas do Césio-137 possuem algum poder deliberativo?
3. Qual a postura atual do Estado diante das vitimas?
4. Como tem se dado o atendimento ás vitimas do Césio-137?
5. Qual é a situação das vitimas hoje?
6. Quantas são? Há um quantitativo?
7. Quantas conseguiram benefícios do Estado? Que tipo de beneficio?
8. Qual a postura da equipe de saúde que atende as vitimas?
9. Qual a contribuição das vitimas do Césio para o avanço do seu tratamento?
10. Quantas vítimas comprovadas já vieram a óbito?
11. Quantas vítimas não comprovadas já vieram a óbito? (resposta opcional)
12. Existem ações na justiça, relativas ao Césio, movidas pela associação? Quantas e sobre o que?
13. Existe relação entre a SULEIDE, a associação e a CNEN? Qual?
14. As vitimas do Césio são atuantes nas questões das ciências?
15. Qual a postura da Associação frente a Energia Nuclear?
16. Quais os maiores problemas enfrentados pelas vítimas?
17. A sentença pela punição dos culpados já saiu? Quem foi considerado o culpado pelo acidente?
18. Vocês têm conhecimento da realização de audiências publicas sobre o assunto?
19. Vocês participaram, ou foram convidados a participar de alguma audiência publica sobre assuntos relacionados a energia nuclear?
20. Você considera que as vítimas do Césio-137 têm participado efetivamente do espaço de decisão em relação a assuntos de seu interesse?
21. Atualmente, quais são as reivindicações e lutas da associação?
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APÊNDICE B - Questionário apresentado ao Secretário da AMVC-137 em 02/07/08.
1. Como, quando e porque surgiu essa Associação?
2. Quais os seus objetivos?
3. Quantas pessoas estão vinculadas a essa associação? Qual o critério de vinculação?
4. Quantos e quais foram os presidentes dessa Associação ( ou diretoria) , desde a sua criação?
5. Como tem se dado o atendimento às vítimas do acidente com o Césio-137?
6. Quantas pessoas, nesta associação, são atendidas pela SULEIDE? Qual o atendimento que lhes é realizado? Se não forem, De que forma fazem seu tratamento de saúde (médico e psicológico)?
7. Na sua avaliação, como está o atendimento médico prestado às vítimas (na SULEIDE ou em outro lugar? (favor definir o local)? Está sendo realizado um monitoramento eficaz?
8. Qual a sua opinião sobre a Competência da CNEN para lidar com problemas como o do Césio-137 em Goiânia?
9. Qual a postura atual do Estado diante das vítimas?
10. As vítimas do acidente com o Césio-137 possuem algum poder deliberativo?
11. Quantas conseguiram benefícios do Estado? Que tipo de benefício? Desde quando?
12. Quantas pessoas desta Associação fazem parte do grupo 1, grupo 2, grupo 3 e grupo 4? Que tipo de atendimento é prestado pela SULEIDE a cada grupo?
13. Como está sendo realizado o monitoramento das vítimas do Césio -137? Grupo 1, 2, 3 e 4?
14. Quantas consultas e que tipos de exames são realizados? Estes procedimentos são feitos de acordo com o grupo que está inserido?
15. Quais os grupos que tem acesso ao IPASGO? Desde quando este acesso está ocorrendo?
16. Atualmente, como é realizado o trabalho dos Assistentes Sociais da SULEIDE com as vítimas desta Associação?
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17. Atualmente, como é realizado o trabalho dos Psicólogos da SULEIDE com as vítimas desta Associação?
18. Está sendo realizado um cadastro individual das vítimas?
19. Os medicamentos que as vítimas utilizam são doados pela SULEIDE?
20. Se não forem doados pela SULEIDE, explique como é a sistemática de aquisição do medicamento por parte do usuário (vítima)?
21. Qual a sua opinião sobre a Competência da CNEN para lidar com problemas como o do Césio-137 em Goiânia?
22. Qual a postura atual do Estado diante das vítimas?
23. Como tem se dado o atendimento ás vítimas do Césio -137?
24. As vítimas do Césio-137 possuem algum poder deliberativo?
25. Qual é a situação das vítimas hoje?
26. Qual a postura da equipe de saúde que atende as vítimas?
27. Qual a contribuição das vítimas do césio para o avanço do seu tratamento?
28. Você acredita que o Brasil está preparado para enfrentar uma situação semelhante a que ocorreu em Goiânia?
29. Existem ações na justiça, relativas ao Césio, movidas pela associação? Quantas e sobre o que?
30. Existe relação entre a SULEIDE, a Associação e a CNEN? Qual?
31. Qual a postura da Associação frente a Energia Nuclear?
32. Quais os maiores problemas enfrentados pelas vítimas?
33. Vocês têm conhecimento da realização de audiências publicas sobre o assunto?
34. Vocês participaram, ou foram convidados a participar de alguma audiência publica sobre assuntos relacionados a energia nuclear?
35. Você considera que as vítimas do Césio-137 têm participado efetivamente do espaço de decisão em relação a assuntos de seu interesse?
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APÊNDICE C - Guião da entrevista ao Presidente da Av-Césio-137 em 12 de março de 2007, na sede do Conselho Estadual de Saúde.
1. Quando, como e por que foi criada a AV-Césio -137?
2. Quais os critérios usados para vinculação dos associados?
3. Quantos eram os associados no ato de criação da associação?
4. Qual a motivação para a criação da associação?
5. Quanto tempo é a gestão da associação?
6. Onde foi a primeira sede da associação?
7. Quantos e quais foram os presidentes dessa Associação (ou diretoria), desde a sua criação?
8. Como tem se dado o atendimento às vítimas do acidente com o Césio-137?
9. Vocês têm o apoio de outras ONGs?
10. A relação com a FUNLEIDE era melhor que a relação existente, hoje, com a SULEIDE?
11. O senhor afirma que há um boato da possibilidade de extinção da SULEIDE, caso isso ocorra como vai ficar a situação das vítimas?
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ANEXOS
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ANEXO A - Localização do Município de Abadia
Município de Abadia de Goiás no mapa do Estado de Goiás
Fonte: Mapa de Município. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA . In: «http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/territorio/lisopcmapa.asp?z=t&o=4» Consultado em 01 de outubro de 2006
135
Municipio de Abadia em relação à Cidade de Goiânia
Fonte: Mapa de Município. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA . In: «http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/territorio/lisopcmapa.asp?z=t&o=4» . consultado em 01 de outubro de 2006.
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ANEXO B - Estado de saúde dos radioacidentados 15 anos após o acidente.
FONTE: opopular online.Disponível em: http://www2.opopular.com.br/especiais7cesio15anos/grafico2.gif . Acesso em agosto de 2006.
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ANEXO C - Manifesto de lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental
Representantes de movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, ONGs, entidades ambientalistas, organizações de afrodescendentes, organizações indígenas e pesquisadores universitários, do Brasil, Estados Unidos, Chile e Uruguai, reuniram-se no Colóquio Internacional sobre Justiça Ambiental, Trabalho e Cidadania, realizado em Niterói de 24 a 27 de setembro de 2001. Nessa ocasião denunciaram e debateram a preocupante dimensão ambiental das desigualdades econômicas e sociais existentes nos países representados.
A injustiça ambiental que caracteriza o modelo de desenvolvimento dominante no Brasil foi o foco das discussões. Além das incertezas do desemprego, da desproteção social, da precarização do trabalho, a maioria da população brasileira encontra-se hoje exposta a fortes riscos ambientais, seja nos locais de trabalho, de moradia ou no ambiente em que circula. Trabalhadores e população em geral estão expostos aos riscos decorrentes das substâncias perigosas, da falta de saneamento básico, de moradias em encostas perigosas e em beiras de cursos d´água sujeitos a enchentes, da proximidade de depósitos de lixo tóxico, ou vivendo sobre gasodutos ou sob linhas de transmissão de eletricidade. Os grupos sociais de menor renda, em geral, são os que têm menor acesso ao ar puro, à água potável, ao saneamento básico e à segurança fundiária. As dinâmicas econômicas geram um processo de exclusão territorial e social, que nas cidades leva a periferização de grande massa de trabalhadores e no campo, por falta de expectativa em obter melhores condições de vida, leva ao êxodo para os grandes centros urbanos.
As populações tradicionais de extrativistas e pequenos produtores, que vivem nas regiões da fronteira de expansão das atividades capitalistas, sofrem as pressões do deslocamento compulsório de suas áreas de moradia e trabalho, perdendo o acesso à terra, às matas e aos rios, sendo expulsas por grandes projetos hidrelétricos, viários ou de exploração mineral, madeireira e agropecuária. Ou então têm as suas atividades de sobrevivência ameaçadas pela definição pouco democrática e pouco participativa dos limites e das condições de uso de unidades de conservação.
Todas estas situações refletem um mesmo processo: a enorme concentração de poder na apropriação dos recursos ambientais que caracteriza a história do país. Uma concentração de poder que tem se revelado a principal responsável pelo que os movimentos sociais vêm chamando de injustiça ambiental. Entendemos por injustiça ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis. Por justiça ambiental, ao contrário, designamos o conjunto de princípios e práticas que:
a - asseguram que nenhum grupo social, seja ele étnico, racial ou de classe,
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suporte uma parcela desproporcional das conseqüências ambientais negativas de operações econômicas, de decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas;
b - asseguram acesso justo e eqüitativo, direto e indireto, aos recursos ambientais do país;
c - asseguram amplo acesso às informações relevantes sobre o uso dos recursos ambientais e a destinação de rejeitos e localização de fontes de riscos ambientais, bem como processos democráticos e participativos na definição de políticas, planos, programas e projetos que lhes dizem respeito;
d - favorecem a constituição de sujeitos coletivos de direitos, movimentos sociais e organizações populares para serem protagonistas na construção de modelos alternativos de desenvolvimento, que assegurem a democratização do acesso aos recursos ambientais e a sustentabilidade do seu uso.
Estamos convencidos de que a injustiça ambiental resulta da lógica perversa de um sistema de produção, de ocupação do solo, de destruição de ecossistemas, de alocação espacial de processos poluentes, que penaliza as condições de saúde da população trabalhadora, moradora de bairros pobres e excluída pelos grandes projetos de desenvolvimento. Uma lógica que mantém grandes parcelas da população às margens das cidades e da cidadania, sem água potável, coleta adequada de lixo e tratamento de esgoto. Uma lógica que permite que grandes empresas lucrem com a imposição de riscos ambientais e sanitários aos grupos que, embora majoritários, por serem pobres, têm menos poder de se fazer ouvir na sociedade e, sobretudo, nas esferas do poder. Enquanto as populações de maior renda têm meios de se deslocar para áreas mais protegidas da degradação ambiental, as populações pobres são espacialmente segregadas, residindo em terrenos menos valorizados e geotecnicamente inseguros, utilizando-se de terras agrícolas que perderam fertilidade e antigas áreas industriais abandonadas, via de regra contaminadas por aterros tóxicos clandestinos.
Os trabalhadores urbanos e rurais, por sua vez, estão freqüentemente submetidos aos riscos de tecnologias sujas, muitas delas proibidas nos países mais industrializados, que disseminam contaminantes que se acumulam de maneira persistente no meio ambiente. Esses contaminantes, além de provocar doenças nos próprios trabalhadores, produzem "acidentes" por vezes fatais com crianças que circulam em áreas de periferia onde ocorrem os descartes clandestinos de resíduos. A irresponsabilidade ambiental das empresas atinge em primeiro lugar e com maior intensidade as mulheres, a quem cabe freqüentemente a lavagem dos uniformes de trabalho contaminados de seus maridos ou o manejo de recipientes de agrotóxico transformados em utensílios de cozinha. Esse ciclo de irresponsabilidade ambiental e social das empresas poluentes e de muitos gestores e órgãos governamentais, ameaça o conjunto dos setores sociais, haja vista que rios e alimentos contaminados por agrotóxicos e pela falta de tratamento de esgoto
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acabam por afetar as populações nas cidades.
A anencefalia nas crianças nascidas em Cubatão (SP), a presença das substâncias cancerígenas conhecidas como "drins" nas pequenas chácaras de Paulínia (SP), a estigmatização que perpetua o desemprego dos trabalhadores contaminados por dioxina no ABC paulista, a alta incidência de suicídio entre os trabalhadores rurais usuários de agrotóxicos em Venâncio Aires (RS) são exemplos que configuram as manifestações visíveis de um modelo fundado na injustiça estrutural e na irresponsabilidade ambiental de empresas e governos. Apesar do fato de que a lógica deste modelo é sistematicamente negada por seus responsáveis, que alegam a ausência de causalidade entre as decisões políticas e produtivas e os efeitos danosos que têm sobre suas vítimas.
O enfrentamento deste modelo requer que se desfaça a obscuridade e o silêncio que são lançados sobre a distribuição desigual dos riscos ambientais. A denúncia do mesmo, por outro lado, implica em desenvolver articuladamente as lutas ambientais e sociais: não se trata de buscar o deslocamento espacial das práticas danosas para áreas onde a sociedade esteja menos organizada, mas sim de democratizar todas as decisões relativas à localização e às implicações ambientais e sanitárias das práticas produtivas e dos grandes projetos econômicos e de infraestrutura. Pensamos que o tema da justiça ambiental - que indica a necessidade de trabalhar a questão do ambiente não apenas em termos de preservação, mas também de distribuição e justiça - representa o marco conceitual necessário para aproximar em uma mesma dinâmica as lutas populares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida e a sustentabilidade ambiental. Por esse motivo criamos a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, que tem os seguintes objetivos básicos:
Elaborar coletivamente uma "Declaração de Princípios da Justiça Ambiental no Brasil" - Essa declaração será objeto de um processo de discussão contínuo de médio prazo, servindo para aglutinar forças, afinar conceitos e suscitar estratégias. Nos EUA, o movimento de justiça ambiental foi estruturado nacionalmente a partir do programa dos "17 princípios" elaborado em 1991 na Primeira Cúpula Nacional de Lideranças Ambientais de Cor pela justiça ambiental. No caso brasileiro, assim como naquele país, espera-se que um tal processo ajude a disseminar as lutas e as estratégias associadas à noção de justiça ambiental.
Criar um ou mais centros de referências de Justiça Ambiental - Trata-se de uma proposta de democratização de informações, criando bancos de dados que contenham registros de experiências de lutas, casos concretos de injustiça ambiental, conflitos judiciais, instrumentos institucionais etc. Trata-se também de aglutinar peritos de diferentes especialidades dispostos a apoiar as demandas de assessoria dos movimentos. Os centros ajudarão a acompanhar e divulgar resultados de pesquisa acadêmica sobre desigualdades ambientais. Fóruns periódicos debaterão e consolidarão as
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experiências dos diferentes tipos de lutas desenvolvidas.
Diálogo permanente entre atores - Promover o intercâmbio de experiências, idéias, dados e estratégias de ação entre os múltiplos atores de lutas ambientais: entidades ambientalistas, sindicatos urbanos e rurais, atingidos por barragem, movimento negro, remanescentes de quilombos, trabalhadores sem terra, movimento de moradores, moradores em unidades de conservação, organizações indígenas, ONGs, fóruns e redes. Além de encontros específicos por setores, pretende-se organizar encontros maiores que ampliem a cooperação e o esforço comum de luta. Um dos principais objetivos desse esforço é sensibilizar os meios de comunicação, os formadores de opinião e a opinião publica em geral.
Desenvolvimento de instrumentos de promoção de justiça ambiental - Produzir metodologias de "Avaliação de Equidade Ambiental", manuais de valorização das percepções ambientais coletivas, mapeamento dos mecanismos decisórios com vistas à democratização das políticas ambientais em todos os níveis, cursos para a sensibilização dos agentes do poder público envolvidos com a regulação do meio ambiente. Produzir argumentos conceituais e evidências empíricas em favor da sustentabilidade democrática e da justiça ambiental.
Pressionar órgãos governamentais e empresas para que divulguem informações ao público - Reivindicar a publicação sistemática de informações sobre as fontes de risco ambiental no país. As agências estaduais, em particular, deverão ser pressionadas publicamente para produzir dados sobre a distribuição espacial dos depósitos de lixo tóxico e perigoso.
Contribuir para o estabelecimento de uma nova agenda de ciência e tecnologia - Apoiar pesquisas voltadas para os temas da justiça ambiental realizadas sempre que possível através do diálogo entre pesquisadores, comunidades atingidas e movimentos organizados. Ajudar a formar técnicos e peritos que trabalhem dentro dessa perspectiva. Estimular o desenvolvimento de novas metodologias científicas e de novas tecnologias que ajudem a promover a luta contra a injustiça ambiental, sempre respeitando os direitos de cidadania e o saber das comunidades locais.
Estratégia de articulação internacional - Desenvolver contatos com parceiros internacionais no campo da estratégia política, da cooperação científica, da troca de informação sobre normas e padrões ambientais, da luta contra a exportação de processos poluentes e de depósitos de rejeitos perigosos. Preparar uma oficina sobre Justiça Ambiental no II Fórum Social Mundial em Porto Alegre, 2002.
Consideramos que o termo Justiça Ambiental é um conceito aglutinador e mobilizador, por integrar as dimensões ambiental, social e ética da sustentabilidade e do desenvolvimento, freqüentemente dissociados nos discursos e nas práticas. Tal conceito contribui para reverter a fragmentação e o isolamento de vários movimentos sociais frente aos processos de
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globalização e restruturação produtiva que provocam perda de soberania, desemprego, precarização do trabalho e fragilização do movimento sindical e social como um todo. Justiça ambiental, mais que uma expressão do campo do direito, assume-se como campo de reflexão, mobilização e bandeira de luta de diversos sujeitos e entidades, como sindicatos, associações de moradores, grupos de afetados por diversos riscos (como as barragens e várias substâncias químicas), ambientalistas e cientistas.
As entidades que promoveram e participaram do Colóquio farão reuniões para organizar a estrutura de funcionamento e as primeiras atividades da Rede, com base nos princípios acima descritos. Todos os que se sentirem de acordo com a proposta da Justiça Ambiental estão convidados a participar.
Setembro de 2001.
Fonte: Manifesto de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Disponível em : http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=229. Acesso em 10/07/08.
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ANEXO D - Reprodução da entrevista realizada pelo Jornal Opção online com o jornalista Weber Borges – profissional que realizou a cobertura do acidente de Goiânia.
Parte I- “Goiás não pode patrocinar o esquecimento do acidente do césio”
O acidente radioativo de Goiânia — mais conhecido como acidente do césio 137 —, que provocou mortes e deixou pessoas feridas “no corpo e na alma”, completa 20 anos em setembro deste ano, daqui a quatro meses. Mesmo assim, e sabendo-se que o governo federal vai organizar um seminário internacional, em Goiás patrocina-se uma espécie de esquecimento racionalizado, denuncia o jornalista Weber Borges, que foi produtor do Goiânia Urgente (programa que pertencia à TV Goiá, associada ao SBT de Silvio Santos) e, durante três meses, assessor da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), ligado diretamente ao presidente do órgão, Rex Nazaré. “Goiás não pode patrocinar o esquecimento do acidente. Pelo contrário, pode conquistar um centro internacional de estudos a respeito do que aconteceu em sua capital em 1987.”
Aos 62 anos, autor do livro Eu Também Sou Vítima — A Verdadeira História Sobre o Acidente com o Césio 137 em Goiânia, Weber diz que é preciso escrever a história do acidente e de suas vítimas. Ele convoca as universidades do Estado a discutirem a questão e a escreverem essa história. Os dados científicos foram levantados pela CNEN e há muitas vítimas que podem contar suas histórias. “É uma história de muito sofrimento, de muita batalha, de muita persistência. Há um arquivo vivo que, depois de 20 anos, continua sendo desconsiderado.”
Weber Borges diz que uma das questões centrais hoje é melhorar o atendimento das vítimas. “Faltam medicamentos. Elas estão menos preocupadas com dinheiro do que com um tratamento adequado.”
Euler de França Belém — A CNEN continua monitorando alguns lugares onde esteve a bomba de césio?
Sim, mas não sei se o trabalho continua sendo feito de modo rigoroso.
Hélmiton Prateado — Quantas pessoas trabalham no depósito de Abadia de Goiás? Não sei o número preciso, mas não são poucas pessoas. Quem dirige o depósito é o físico Rubemar de Souza Ferreira, que tem doutorado em engenharia nuclear. Euler de França Belém — O Sr. mantém contato com as vítimas?
Mantenho contato permanente com elas. Converso com Odesson Alves Ferreira, um sujeito coerente. Converso com Lourdes das Neves Ferreira, a mãe de Leide das Neves. Ela perdeu a filha, de 6 anos, e o marido, Ivo Alves Ferreira. O filho tem problemas graves com bebida alcoólica. Está sozinha no mundo, há 20 anos, mas, apesar de sofrer muito, resiste bravamente.
Hélmiton Prateado — O sr. trabalhou como assessor de imprensa do Rex Nazaré, da CNEN. Ele cobrava transparência?
Rex Nazaré olhava muito a questão social. No início, eu achava que ele era militar. Descobri que havia pertencido ao Partidão [Partido Comunista Brasileiro]. Rex
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propôs fazer o encaminhamento de todas as pessoas para a Legião Brasileira de Assistência. Para ele, não interessava se eram 20 ou 500. As pessoas “adoentadas” deveriam ser encaminhadas para a LBA, dizia o presidente da CNEN. Avaliava que um órgão federal poderia obter apoio internacional. O governo de Goiás não teve discernimento. Hélmiton Prateado — O governo goiano preferiu criar a Fundação Leide das Neves. Mesmo sem a autorização da mãe, o governo criou a fundação e lhe deu o nome de Leide das Neves. A fundação nasceu da noite para o dia. O conflito entre governos federal e estadual não favoreceu as vítimas do césio. Na sua despedida, Rex Nazaré fez um discurso emocionado e falou do sentimento das pessoas. A fundação no início funcionava melhor; hoje, precisa ser repensada.
Euler de França Belém — Quais são as principais reclamações das vítimas do césio? Falta de medicamentos. Elas querem discutir mais saúde do que dinheiro. O governo do Estado dá uma ninharia às vítimas, mas a reclamação maior é a respeito do atendimento na área de saúde. A Fundação Leide das Neves atende de modo restrito. Não é brincadeira tratar de modo adequado um grupo de 300 ou 500 pessoas. Os cuidados são físicos e, devido aos traumas, também psicológicos.
Euler de França Belém — Algumas vítimas do acidente disseram ao sr. que o governo quer descartá-las?
Elas consideram que todos — os que lidaram com o acidente — querem sair do jogo e abandoná-las. Luiza Odet Mota dos Santos fez cirurgias sérias e, ao receber a informação de que precisava fazer outras, não quis mais saber. Ela considera os enxertos como uma morte. O sofrimento é intenso, pois as pessoas perderam entes queridos, a história afetiva e bens. A reconstrução de uma vida normal não é fácil. Odesson tranca-se no banheiro para chorar, solitariamente, sem que ninguém perceba. Ele era motorista da Araguarina.
Euler de França Belém — Depois de 20 anos, sempre estudando o assunto, qual é a grande história individual do acidente?
A grande história é a de Lourdes da Neves Ferreira, a mãe da menina Leide das Neves, que morreu aos 6 anos. É uma mulher sensível, fala baixinho, é uma gordinha simpática. Seu olhar brilha e, apesar de toda a tragédia que abalou sua família, ainda acredita na vida.
José Maria e Silva — As vítimas do acidente têm um líder?
Odesson Alves Ferreira é o líder. Ele batalha pelas vítimas, procura verbas e discute o assunto como conhecedor. Odesson entendeu bem o que aconteceu e se tornou um formador de opinião. Faz conferências, é integrante do Conselho Estadual de Saúde e briga pelas vítimas do acidente. Quando falta remédio, denuncia, se posiciona. Na vida pessoal, educa os filhos com muito rigor. Diz que seus filhos têm de ser exemplos.
José Maria e Silva — Por que Odesson se tornou uma pessoa tão firme? Ele tem consciência de que precisa ser assim para obter ajuda para as vítimas do acidente. Na época do acidente, Odesson já parecia ser o mais sério dos irmãos
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[Devair Ferreira, falecido, era um dos irmãos]. Fui para o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, pela Varig, e Odesson não quis ir de avião. Ele disse: “Não vou de avião, pois não tenho dinheiro para pagar a passagem”. Foi de ônibus.
Hélmiton Prateado — Liderados pelo deputado José Nelto, na época vereador, populares apedrejaram o caixão de Leide das Neves, no Cemitério Parque. O Sr. estava lá?
Avaliaram que a população poderia ser manipulada, o tempo todo, para o lado do mal. No início, a multidão foi agressiva, no estilo da massa, na qual o indivíduo é dissolvido e, portanto, em tese, não há responsabilidade individual. Depois, ao perceber o que estava fazendo, paralisou-se, aparentemente constrangida. Entre os líderes do apedrejamento estavam José Nelto e Ornela, líder de bairro. Em seguida, Ornela me procurou e disse que estava amargamente arrependida. É fato que os moradores do bairro não queriam o sepultamento no Cemitério Parque, porque imaginavam que todas as pessoas da região seriam contaminadas. Não estavam bem-informadas a respeito dos caixões de chumbo e das covas especiais, que foram concretadas. As famílias dos mortos não aceitaram que os corpos fossem levados para o depósito.
Hélmiton Prateado — O Sr. diz, no livro, que, “queiram ou não, Goiânia é um laboratório vivo”. A frase persiste válida?
Permanece, pelo menos, por mais 280 anos.
Euler de França Belém — A história de que cresceu o número de pessoas com câncer em Goiânia em virtude do acidente radioativo não tem prova conclusiva. Não há dados científicos. Existem histórias, boatos.
Na verdade, o que falta é pesquisa científica a respeito da questão. Não há interesse em fazer pesquisas. Não há investimento. O governo do Estado e as universidades goianas não se interessam por fazer um estudo amplo a respeito. Se houvesse interesse, a pesquisa poderia ser financiada por organismos internacionais. Levei vários pesquisadores à Rua 57. Um cientista era indiano. Ele cortou e pôs num saco de plástico algumas flores de laranja e foi embora. Cadê o resultado e sua pesquisa? Ninguém, pelo menos no Brasil, sabe. Japão e Alemanha certamente têm interesse em estudar o assunto, mas não são procurados. Parece que os governos estadual e federal querem esquecer o acidente radioativo de Goiânia. Os goianos não devem patrocinar o esquecimento da tragédia, não devem negar sua própria história. Hélmiton Prateado — Algumas vítimas do acidente foram levadas para Cuba. Quais os resultados das investigações médicas dos cubanos?
Não sei nada a respeito. Nem sei o que foram feitas das amostras. Os cubanos não repassaram informações.
Euler de França Belém — É verdadeira a informação de que sumiram os cérebros das primeiras vítimas do césio?
Não tenho prova. Mas me falaram a respeito. A informação que tenho é que um braço do Roberto Santos Alves ficou no Hospital Marcílio Dias. Acho até normal que estudem os cérebros das pessoas, mas desde que seja feito de modo transparente e que as famílias autorizem.
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Euler de França Belém — O físico Luiz Pinguelli Rosa diz que há “muitas bombas de césio e de cobalto sem controle” no Brasil. Ele alerta para possíveis novos acidentes.
Uma emissora de televisão me entrevistou e eu disse que algumas universidades — em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais — têm depósito de lixo radioativo. O repórter decidiu entrevistar Luiz Pinguelli Rosa e ele disse: “Tem, mas está tudo seguro”. Ora, se dizem que tem lixo radioativo, mas não tem depósito, qual é a segurança? No caso de sua pergunta, o alerta de Pinguelli deveria ser feito de modo mais contundente.
Euler de França Belém — A mídia goiana discute a questão das vítimas, o atendimento e as pensões, mas raramente debate o acidente.
A imprensa deveria discutir o acidente de forma mais acentuada. Os jornais deveriam mergulhar na questão. Falta uma seqüência de reportagens mais sólidas. Qual o resultado da pesquisa da professora Telma Camargo da Silva, da UFG? Por que a imprensa não busca saber o resultado desse estudo? A TV Anhanguera tem um acervo do acidente ou não? Depois de 20 anos, Goiás não produziu nenhum jornalista especializado no acidente. Tenho um acervo que considero muito rico — são mais de 200 horas de fitas de vídeo. Sou muito procurado e abro meus arquivos para todos.
Euler de França Belém — Qual é o melhor livro sobre o acidente de Goiânia?
O do jornalista Fernando Gabeira não fala especificamente sobre o acidente de Goiânia, e sim a respeito da energia nuclear no mundo. O meu livro, Eu Também Sou Vítima, trata exclusivamente do acidente do césio. Há trabalhos científicos, mas de difícil acesso popular. É estranho que o país tenha se interessado tão pouco por um acidente de tal gravidade. Estive em São José do Rio Preto, num congresso de jornalismo científico, e ninguém sabia nada a respeito do acidente. Levei um susto.
Euler de França Belém — Se o responsável pelo acidente é o governo federal, que manda na CNEN, por que o promotor de justiça Marcos Antônio Ferreira Alves trabalha para que o governo de Goiás indenize e ampare, solitariamente, as vítimas da radiação?
Não sei por quê. Trata-se de uma boa pergunta. O fato é que Marcos Antônio faz um excelente trabalho em defesa das vítimas do acidente radioativo e também atua para envolver o Ministério Público Federal. Ele é um dos maiores conhecedores da história das vítimas do césio.
Euler de França Belém — O governo estadual gastou uma pequena fábula para bancar as despesas com as vítimas do césio. O ex-governador Henrique Santillo contou, e o Sr. cita no livro, que Goiás gastou milhões de reais.
O governo goiano gastou muito dinheiro e não foi ressarcido. Trata-se de um debate que os políticos goianos precisam travar. Não é uma questão morta.
Euler de França Belém — No livro Eu Também Sou Vítima, o sr. registra uma grave denúncia do promotor de justiça Marcos Antônio Ferreira Alves: “Tenho depoimentos que relatam que os medidores tinham os alarmes sonoros desligados para não causar pânico nos trabalhadores”. Ele está citando as pessoas que trabalharam nos locais contaminados pelo césio.
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Como o ambiente de trabalho na CNEN era militar, não se conversava. As coisas eram impostas. É muito estranho o Serviço Nacional de Informação (SNI), hoje Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), ter assento na Comissão de Energia Nuclear. Hélmiton Prateado — Os diretores da CNEN, ao desligarem os medidores, mostraram um alto grau de irresponsabilidade.
O sistema de comunicação da CNEN deveria mudar — e muito. Fui escolhido para trabalhar na assessoria de imprensa da CNEN porque ninguém queria vir para Goiânia. Lidar com um setor que não quer se abrir é muito complicado.
Euler de França Belém — E a história de que os alarmes sonoros dos medidores de radioatividade eram desligados?
Recebi a mesma informação que repassaram ao promotor de Justiça. Os técnicos às vezes andavam com o contador gêiser desligado na rua porque o barulho incomodava as pessoas. É o que ouvi. Ressalto que, no geral, o trabalho dos técnicos era muito sério, tanto que a cidade, os pontos atingidos, foi descontaminada. Euler de França Belém — O sr. relata a história de um chapa que denunciou que alguns tambores com o lixo radioativo estavam deteriorados. A versão do trabalhador: “Tirávamos os rejeitos do tambor furado ou enferrujado e passávamos para outro manualmente. O danificado era amassado a marretadas e colocado em uma caixa metálica. A ordem, em dia de visita, era virar os tambores enferrujados, remendá-los e pintá-los com spray amarelo ou cobri-los com lona para que as câmeras não pudessem filmá-los ou fotografá-los”.
Eu gravei imagens que provam isso. Tenho um DVD que mostra dois galões com buracos. Quando os tambores eram jogados nos caminhões, caía terra e os trabalhadores, sem orientação, pegavam com as mãos. Eu filmei — não há como negar. Euler de França Belém — Como foi a escolha do depósito de lixo radioativo em Abadia de Goiás?
Ao perceber o caos a respeito da escolha do local definitivo para o depósito do lixo radioativo — ninguém queria ficar com o material —, políticos goianos e cientistas, depois de examinar vários locais, sugeriram uma área em Abadia de Goiás, próximo de Goiânia. Houve reações, fecharam estradas, incendiaram pneus, mas o governo Santillo agiu com firmeza. O engenheiro (de Furnas) Alfredo Tranjan Filho foi importante na escolha do local e, sobretudo, na organização do depósito.
Euler de França Belém — Qual foi o cientista, ou técnico, que ficou como símbolo do trabalho de descontaminação da cidade e do tratamento das pessoas? Há vários cientistas e técnicos sérios. É difícil apontar apenas um. Um cientista nuclear, Alfredo, estava sempre varrendo os lugares do acidente do césio. Ele não estava varrendo barro ou poeira — e, sim, césio. A cena era muito curiosa. Um dos grandes trabalhadores era o Alfredo (não é o que varria césio) Tranjan Filho, que foi coordenador do Projeto Goiânia, da CNEN. Este é o meu “ídolo trabalhista”. Ele
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falava assim: “Por favor, pára de perguntar um pouco. Eu tenho de descansar”. Por uma questão de afinidade, não lhe dava trégua. Eu estava trabalhando para a CNEN, e todos os dias, às 8 horas, levava o briefing para a imprensa.
Euler de França Belém — Daqui a quatro meses, o acidente completa 20 anos. O governo goiano organizou alguma programação para discutir o acidente? As universidades vão fazer algum seminário?
Não sei. O congresso internacional da CNEN, que contará com a participação de pessoas que trabalharam na descontaminação de Goiânia e no tratamento das vítimas do césio, será realizado em outubro.
Hélmiton Prateado — A Secretaria de Saúde mantém a discussão sobre o acidente do césio ou a questão está vinculada a outra secretaria?
Deveria ser a Secretaria de Saúde, mas parece que a questão está sob o controle da Secretaria de Ciência e Tecnologia. O problema é que a Secretaria de Saúde não tem dinheiro.
Euler de França Belém — Como o sr. avalia o filme Césio 137 — O Pesadelo de Goiânia?
É um trabalho surreal. O diretor poderia ter feito um documentário-filme. O meu material é um filme, e mais fidedigno. Entrevistado por mim, Odesson Alves Ferreira conta a história das pessoas e do acidente, e eu acrescento com informações que apurei nos bastidores. Trata-se de um filme feito em VHS.
Euler de França Belém — Como as pessoas que roubaram a peça com o césio se sentiram depois de descobrir a tragédia que provocaram?
Elas avaliam que não roubaram — retiraram a peça de um lugar abandonado. Haviam passado pelo local umas quatro vezes, tentando retirar a peça, e ninguém dizia nada. Ao verem a peça, pensaram que poderiam vendê-la para um ferro-velho. Descobriram que o peso era do chumbo e disseram: “Vamos ficar ricos”. Não imaginaram que dentro da peça havia uma “marmitinha” mortal — com o césio 137 — com 15 centímetros de altura e 20 centímetros de diâmetro. Bateram até furar a peça e começaram a espalhar o pó. Para se ter uma idéia da força do césio, Roberto Santos Alves, num dos dias em que havia mexido na máquina, foi almoçar na casa de um amigo na Rua 55, no Centro, e sentou-se em um pedaço de madeira. Mais tarde, quando um carro com técnicos da CNEN passou pela rua, o medidor de radioatividade “apitou”. Tiveram que fazer um mapa dos locais por onde Roberto havia passado. O acidente do césio não é assunto apenas para cientistas e deve ser discutido pela sociedade, sobretudo nas escolas.
Hélmiton Prateado — Por que a questão é pouco debatida? Porque se tornou assunto de cientistas, ou seja, de guetos. Procede que um laboratório afundou em Angra dos Reis? Não se sabe exatamente. Por que não se discute a irradiação de alimentos. Como se sabe, comemos alimentos irradiados há muito tempo. Isto faz bem ou mal? Se é positivo, por que não discutir o assunto de modo mais acentuado?
Euler de França Belém — Depois do governador Henrique Santillo, outros
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governadores se interessaram pelo assunto do césio?
A política definida em relação ao césio é a do esquecimento. De algum modo, esquecer o acidente é quase como negar que tenha acontecido — é postular que não há uma história ou que ela morreu junto com algumas das vítimas. O césio, que existe e fará parte da história do Estado por, no mínimo, mais 280 anos, poderia trazer algum benefício para Goiás? É provável que sim, sobretudo na questão da pesquisa científica. Um centro de estudos avançado teria apoio internacional.
José Maria e Silva — A intenção era fazer um centro de estudos em Abadia de Goiás. Com a história dos 20 anos, pretendem fazer um centro de estudos.
Parte II- Ministério da Saúde é omisso.
Euler de França Belém — A respeito das vítimas, o que ainda é preciso discutir? O atendimento médico. O Ministério da Saúde até hoje não participou, diretamente, do atendimento às vítimas. A questão não pode ser administrada tão-somente pela Secretaria de Saúde de Goiás. Não se sabe o que vai acontecer com algumas pessoas que de algum modo tiveram contato com o césio, mesmo assim, não se sabe por quê, o Ministério da Saúde não se manifesta. O governo federal tem sido omisso. Euler de França Belém — As vítimas do césio são atendidas no Hospital Geral de Goiânia. Elas têm prioridade?
São atendidas no HGG, e têm prioridade. Mas reclamam, com razão, que faltam medicamentos. O problema de medicamentos é, infelizmente, geral. O centro de saúde Juarez Barbosa, que fornece remédios de alto custo, é uma calamidade.
Euler de França Belém — As vítimas do acidente continuam se reunindo na associação? Continuam. Elas sabem que se trata de uma luta para a vida toda. Odesson Alves Ferreira é quem comanda a batalha.
Euler de França Belém — Quantas pessoas participam da associação? Não tenho o número preciso. Sei que mais de 600 pessoas recorreram ao Ministério Público para receber algum apoio do Estado — pensão ou assistência médica. Não sei se todos são associados.
Parte III- Cadê os arquivos do césio?
Euler de França Belém — Depois de 20 anos, o que o sr. avalia que falta discutir a respeito do acidente?
É preciso criar uma norma de comunicação a respeito da questão da radioatividade-nuclear. Se houver um novo acidente, como se portar, como comunicá-lo? Não se sabe, pois não há quaisquer regras. Em Goiânia, houve um pandemônio: cada setor
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dizia uma coisa, o que gerou pânico. Também é importante comunicar à sociedade o que se descobriu e o que se fez em Goiânia. A cidade foi descontaminada? Sim, mas como foi feito o trabalho?Cadê sua história?Qual é a situação das vítimas? Depois de 20 anos, temos informações dispersas, não conectadas. A falta de uma história do acidente, com fartura de dados oficiais, que existem em algum lugar, é, de certo modo, uma forma sutil de negar o acidente. Ou melhor, de suavizar o que aconteceu, de não admitir sua gravidade. Os jornais perguntam sobre os arquivos da Guerrilha do Araguaia — e eu pergunto: cadê os arquivos do césio?
Euler de França Belém — A CNEN organizou, pelo menos para consumo interno, a história do acidente radioativo?
Espero que tenha organizado. Pelo menos tem muitos dados reunidos por uma equipe de cientistas do primeiro time. Além de ter um excelente capital humano. Rex Nazaré permitiu que eu filmasse até a reunião de avaliação do acidente. Gravei 20 fitas do encontro que congregou cerca de 400 pessoas. As fitas são um registro da história do acidente.
Hélmiton Prateado — Por que os dados obtidos pelo sr., durante a reunião, não foram comunicados publicamente pela CNEN?
Não sei se por uma questão de censura, falta de visão ou outro motivo. Ao gravar as informações, com a anuência de Rex Nazaré, meu objetivo era montar um documentário e mostrar nas escolas. Rex Nazaré gostou da idéia e prometeu me ajudar. Gravei as fitas, que resultam num documentário fabuloso, mas não consegui organizar o projeto de mostrá-lo nas escolas.
Euler de França Belém — Na Ucrânia, há pelo menos uma história oficial, escrita, do acidente de Chernobyl. No caso de Goiás, é provável que haja uma história oficial para consumo interno da CNEN. Por que essa história não vazou? A história escrita da CNEN, que foi enviada para Viena, para a Agência Internacional de Energia Nuclear, vazou, mas não alcançou repercussão pública. A história comporta várias versões ou interpretações.
Hélmiton Prateado — Quais versões?
Você pode achar estranho, mas a história contada por um físico nuclear do Nordeste é diferente da história relatada por um físico nuclear de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Um físico nordestino tende a enriquecer as histórias de modo diferente do estilo seco ou objetivo de um paulista. Um deles conta que ficou esperando os porcos contaminados morrerem e, como eles demoravam a morrer, ficou agoniado. “Não havia nenhuma cerveja para a gente tomar”, contou ele, num conclave internacional. Eu pretendo editar um segundo livro sobre a história do césio. José Maria e Silva — No lugar da CNEN, o Sr. não acha que o governo do Estado e as universidades de Goiás, como a UFG, deveriam adquirir seus arquivos para contribuirem para pesquisas e estudos sobre o acidente radioativo? Há alguns anos, inscrevi meu material no Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica), na Cidade de Goiás. Ganhou um indivíduo da Universidade Católica que produziu um vídeo a partir dos meus arquivos, e eu, estranhamente, perdi. O cineasta João Batista de Andrade assumiu o comando do Fica e, por isso,
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coloquei meus vídeos à sua disposição. Não quero competir, mas o material pode ser exibido numa mostra paralela. Euler de França Belém — O que os cientistas disseram de seu livro?
Alguns disseram “não é nada disso”, ou “há uma série de coisas a serem revistas”. Mas não contestaram as informações cruciais. Metade do livro é composta de histórias que os próprios cientistas contaram. Não inventei nada. Colhi e publiquei as histórias. Euler de França Belém — O que o sr. disse aos cientistas que o questionaram?
Ao preparar a segunda edição, pedi que enviassem textos apontando os problemas do livro. Expliquei que publicaria os questionamentos integralmente. Até agora, não mandaram nada.
Parte IV- Vítimas têm medo de filhos nascerem com problemas
Euler de França Belém — A oncologista Maria Paula Curado é um mito ou tem um trabalho relevante na questão do atendimento às vítimas do césio?
Maria Paula trabalha com seriedade e dedicação. É reconhecida internacionalmente. Eventualmente, abre mão de posições que poderia manter com mais energia.
Hélmiton Prateado — O sr. quer dizer que, às vezes, Maria Paula é “omissa” ou falta-lhe energia?
Ao ser confrontada com problemas expostos pelas vítimas do césio, Maria Paula, por ter cargo político, absorve orientações políticas. Noutras palavras, é representante do governo, não das vítimas do acidente radioativo. Repito, a Paulinha é uma médica competente e de uma seriedade inquestionável.
Euler de França Belém — A médica Maria Paula Curado disse: “Não possuímos aparelhos para dosificar o que talvez permaneça no corpo das vítimas 15 anos depois, e esse é um dos desafios”. Depois de 20 anos, o que aconteceu?
Não tenho competência técnica para discutir a questão. Mas vou consultar o físico Carlos Alberto Nogueira de Oliveira, que está em Viena, a respeito do assunto. Euler de França Belém — Maria Paula disse também: “O grande mistério é identificar qual o dano genético provocado pela contaminação e o que essa mutação pode causar”.
Os cientistas e médicos deveriam acompanhar com mais atenção o que está acontecendo com as vítimas do césio e seus filhos. Há casos de má formação genética, mas não são suficientemente estudados. Pode-se dizer que há até certo descaso. Faço também uma pergunta: cadê os médicos que lidaram com as vítimas? Eles só aparecem na época de congressos, atualizam alguns dados — e só. Euler de França Belém — Cito a oncologista Maria Paula mais uma vez, dada a importância do que expõe: “Aos que apresentaram altas doses de contaminação, recomendávamos evitar filhos. Ainda temos vítimas dessas altas doses que desejam filhos, mas não podem porque ficaram estéreis após
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o acidente. A radiação deixou cinco homens estéreis”. No livro, o sr. conta histórias de pessoas que tiveram filhos sem problemas.
Conheço pessoas que tiveram filhos normais. Mas há também problemas. Relato o caso de homens estéreis, de policiais militares com câncer.
Euler de França Belém — O sr. vivenciou o drama das famílias que queriam ter filhos mas não podiam?
Alguns me diziam que tinham medo do filho nascer aleijado. Euler de França Belém — O sr. registra, no livro, dois casos de famílias cujos filhos nasceram com problemas sérios de má formação. Uma das crianças morreu.
Todos têm a “neura” de que o filho vai nascer aleijado. Eles fazem a mesma pergunta aos médicos: “Devo ou não ter filhos?”. Os médicos não têm como responder com precisão à pergunta.
Euler de França Belém — O homem Weber Borges se tornou mais rico, em termos humanos, depois de cobrir o acidente e, sobretudo, de não ter deixado de conviver com as vítimas do césio?
Há o Weber a.c. e o Weber d.c. Ou seja, antes e depois do acidente do césio. Não estou me comparando com Jesus Cristo [risos]. Sempre fui sensível, molengão, mas, sim, passei a ouvir mais as histórias dos outros, a entender suas dores. É impossível não se emocionar ao ouvir os depoimentos das pessoas. Elas são profundamente verdadeiras e doloridas. Há pouco tempo, aconteceu um fato curioso. Eu estava numa festa e uma morena linda não parava de me olhar, e comecei a pensar “será que hoje estou mais bonito?”. Na verdade, a morena era filha de uma pessoa contaminada pelo césio. Nos meus vídeos, verifiquei que, quando tinha uns 7 anos, ela me disse: “Moço, veja o que minha mãe pintou no muro da nossa casa”. O muro estava cheio de palavrões contra o governo. A criança era inocente.
Prateado, Hémilton. Goiás não pode patrocinar o esquecimento do acidente do césio. Entrevista de Weber Borges. Junho de 2007. Jornal Opção online. Disponível em: http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=Entrevistas&idjornal=240. Acesso em maio de 2008.

FONTE: "http://www.ceped.ufsc.br/sites/default/files/projetos/a_resposta_a_acidentes_tecnologicos_o_caso_do_acidente_radioativo_de_goiania.pdf

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